segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Morrer de saudade

Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos: “Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem, senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta.
 
Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia hora, com ele a empurrar-nos, para parecer que tínhamos andado, sei lá, duas horas. Nem quando fomos à praia, aí perto da sua terra, no Tarrafal, ele amainou. Dentro de água, nem o sentíamos, mas cá fora a areia colava-se-nos ao corpo e não havia forma de estarmos deitados ao sol. Ficámos dentro de água, pois então. E a seguir fomos comer e beber para um restaurante, com vista para a praia. Comida com vista pelo mar fora é o que não falta em Cabo Verde.
Também fomos visitar o campo de concentração. O seu sobrinho, que é o músico Maruka, lembra-se de ver os presos políticos saírem. Contou-nos muitas histórias, o seu sobrinho. E o senhor Mafaldo também. Ficámos a saber que, na infância, foi com a mãe para uma roça, em São Tomé. Que só o deixaram acabar a 4.ª classe muito tarde. Mas fê-lo e tornou-se monitor escolar. Ainda tem os diplomas guardados.
Foi uma boa tarde a ouvir histórias. Quem não gosta delas? Também falámos daquela lenda sobre a origem de Cabo Verde. Aquela da distracção divina - lembra-se? Reza assim: quando Deus acabou de criar o mundo, sacudiu as mãos e caíram pequenos pedacinhos de barro no Atlântico, perto de África. Houve quem chamasse Deus à atenção por ter sido tão descuidado. “Então e agora que pessoas vais lá pôr? E que riquezas?” Mas Deus não se atrapalhou e disse que já havia muito sítio para habitar a terra, que ninguém iria para ali. Enganou-se, como sabemos. Ou não. Talvez houvesse naquele sacudir de mãos uma intenção maior. Escreve o cabo-verdiano Germano Almeida: “Criar um laboratório experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea poderia sair. E saiu o homem cabo-verdiano.”
O senhor Mafaldo, que é “100 por cento católico”, não acredita em actos distraídos de Deus. Faz rapidamente contas de cabeça, algures entre a criação do mundo e a chegada dos portugueses, e acha que algo não bate certo. “É só uma história”, diz, encolhendo os ombros. Admito que sim, senhor Mafaldo. É impossível contrariá-lo. Mesmo quando nos diz que cura cancro e sida só com aloé vera que nasce em frente da sua casa. Como contrariá-lo se fala com tanta calma e ponderação, se mastiga cada palavra e olha para nós, com uma expressão nem sei se afável, se séria? Olhe, senhor Mafaldo, não sei se acredito que uma planta cure cancro e sida, mas acredito em si. Parece a mesma coisa, mas não é.
Nesse dia, fomos de propósito conhecê-lo. O seu sobrinho, que é músico e enfermeiro, fez connosco uns bons quilómetros para nos apresentar o seu tio curandeiro. Foi um prazer conversar consigo, senhor Mafaldo. E andar pelo seu país. Sabe que mais? Apesar de tão diferente do nosso em tanta coisa, na paisagem, tão árida – quase não vimos verde – sentimo-nos próximos de casa. A língua, o Benfica... – meu Deus, eu, que não gosto de futebol, fiquei envergonhada por não saber, como devia, os médios e avançados da equipa em todos os jogos.
Sim, é verdade, senhor Mafaldo, quase não fizemos praia. Nem sequer fomos ao Sal. Mas passeámos pelo Mindelo, pela Baía das Gatas, pela Cidade da Praia, pelo Tarrafal, pela Cidade Velha… Contra o vento que não parava. Um vento de São Vicente que não é normal em Santiago, comentava-se nas ruas. Nas nossas fotografias, as palmeiras estão sempre penteadas só para um lado.
Quando nos despedimos de si, na Calheta, e regressámos à Praia, a noite caía. Na escuridão, os montes pareciam bichos meio adormecidos e as casas com as luzes acesas assemelhavam-se a múltiplos olhos que nos vigiavam.
E o vento, já sabemos, continuava.
Vamos voltar um dia, senhor Mafaldo. Da próxima vez, vamos para as praias! E, já sabe, se perder o medo de andar de avião, estamos à sua espera. Ainda nos disse: “Um dia, meto-me num barco e nem que demore um ano a chegar, vou. Queria tanto conhecer Portugal”. Venha que vai gostar. Agora, que penso bem, até o vento temos em comum. Não se chama harmatão nem lestada, nem vem do Sara, mas também é persistente como o vosso.  Pelo menos, nas férias da minha infância, nas praias do Alto Minho, lembro-me de haver sempre, durante todo o Agosto, nortada. E sabe que mais, senhor Mafaldo? Também tenho saudades dessas férias. É engraçado isto, porque não gosto de nada de vento e tenho tantas saudades...

Maria João Lopes

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O meu pai

Para ler com esta música no repeat:


O meu pai, conta a minha mãe, nunca me mudou uma fralda. E acho que só tenho uma fotografia ao colo dele, muito bebé. Mas tirava-me muitas fotografias e, quando eu tinha medo do escuro, ficava de mão dada comigo até eu adormecer. Que remédio, não podia ser sempre a minha mãe. Contava-me histórias à noite e aldrabava tudo. Não tinha sucesso, eu sabia cada palavra de cor.

O meu pai sempre gostou de me espetar petas: quando eu era miúda, disse que me ia dar um crocodilo e que íamos passeá-lo de trela para o Toural. Perguntei onde é que o íamos pôr, ele disse no terraço. Acreditei. Anos mais tarde, na minha adolescência, comprou-me uma viola para as minhas aulas. Disse-me que era uma Fender Stratocaster e deixou-me espalhar o mito. Só descobri que era mentira quando o meu avô paterno – que tocava guitarra portuguesa – se riu muito ao ouvir a suposta marca da guitarra.

O meu pai sempre murmurou palavrões ao volante, no trânsito, quando me levava à escola de manhã. E sempre teve um carinho especial pelos meninos que faziam diabruras nas aulas. Gostava dos malcomportados. Ele próprio orgulha-se das suas façanhas: quando andava no liceu, levou um vinil do Jimi Hendrix, com mulheres nuas na capa, para uma aula dada por um padre. Pousou o disco na mesa, sabendo que o padre o iria virar ao contrário quando passasse e visse as maminhas ao léu. Acertou. O meu pai adora arreliar as pessoas. E adora vinis. Deu-me o Kind of Blue do Miles Davis em vinil e em cd. Há coisas que nunca são de mais.

O meu pai nunca me inspirou confiança quando me dava dicas para os testes. Contestava as teorias todas que nos ensinavam em História - se eu as escrevesse seria certamente chamada à parte pelos professores. Uma vez, na primária, deu-me uma caneta de tinta permanente para as mãos e eu borratei a cópia toda. A professora disse-me para não usar mais canetas daquelas. Outra vez, a minha mãe, que estava ocupada, pediu-lhe para me fazer perguntas antes do teste de Ciências…Riscou-me o livro todo, a explicar-me como é que se estudava: setas para um lado, sublinhados para outro. Eu repetia-lhe que já tinha estudado, que só queria que me fizesse perguntas. Às tantas, fartou-se e disse-me assim: “Vamo-nos baldar para isto?” Claro que fui logo, disparada, contar à minha mãe.

O meu pai resistiu até à última, quando fiz uma birra porque queria ir de anjo na procissão da catequese. Para o meu pai, não devia haver pesadelo maior do que passar um sábado ou um domingo lá na paróquia, no meio de crianças vestidas de anjos e de nossas senhoras. Só me dizia: “Mas que grande frete”. Lá acabei por convencê-lo, mas chegámos tão tarde que já não havia fatiota para mim.

O meu pai tentava antes convencer-me a alinhar noutros programas. Queria, por exemplo, que fosse com ele a um concerto dos Rolling Stones, quando eu ainda andava para aí na quarta classe. Persuadiu-me de todas as formas, disse-me que eles usavam umas bonecas insufláveis, gigantes, no espectáculo. Nada, foi sozinho. Mais tarde, quando eu tinha aí uns 12 anos, já não sei precisar, sabendo que eu gostava (na altura!) de Guns N’Roses, comprou logo bilhetes. O Expresso escrevia que vinha aí a banda mais perigosa do planeta. Falava-se que a pala de uma das bancadas do estádio de Alvalade não oferecia segurança. E o meu pai como um peixe na água. Pouco tempo depois, entre outros concertos, fomos também juntos aos U2. Em nenhum dos casos era música que o meu pai apreciasse particularmente, mas era sem dúvida um programa melhor do que as procissões da catequese.

O meu pai sempre resolveu problemas num instante, e com grande sabedoria. Recordo-me, por exemplo, da forma como rapidamente me sossegou quando, na primeira classe, tropecei na mochila de uma amiga, caí na sala de aula, e abri a parte superior do lábio. Quando o meu pai chegou à escola, eu estava agarrada à professora, e não parava de chorar. Ele agradeceu o cuidado, meteu-me no carro e, como eu não me calava, perguntou-me: “Queres ir ao hospital levar pontos nisso ou queres uma super gorila?”. Eu parei de chorar e, com uma voz ainda muito sofrida, respondi: “Uma super gorila”. Tenho pena que a minha cicatriz já quase não se note hoje, porque, quando alguém repara nela, gosto de me lembrar que as nossas piores dores podem passar com algo tão simples como uma pastilha elástica. E cicatrizar por si.

Mais tarde, quando comecei a viajar sozinha, o meu pai nunca se preocupou em saber se eu tinha comido ou dormido bem. O que queria - e quer - saber é se, por exemplo, estou a levar com 50 graus em Marrocos. Isso é que o deixa bem-disposto. O meu pai compreende-me se eu gastar seis euros a beber um café na Piazza Navona e depois tiver de dormir o resto das férias na praia, ao relento. O assim-assim não vale a pena.O meu pai é politicamente incorrecto. Responde torto quando lhe apetece. Gosta do azedume do Vasco Pulido Valente e do catastrofismo do Medina Carreira. O meu pai não gosta de paninhos quentes.

O meu pai não tem medo de envelhecer. Gosta de se auto-intitular “o velhote”. O meu pai só não gosta é que lhe digam que é parecido com o Guterres. De facto, de cara são parecidos (e eu sou a cara chapada do meu pai…), mas o meu pai é bem mais alto. Apesar dessas semelhanças, quando olho para o meu pai, não consigo ver o Guterres, mas o Mick Jagger. O meu pai ouve música nas alturas no carro. Antigamente ouvia rock nas alturas em casa, com phones– e sem eles, quando a minha mãe saía. Hoje ouve ópera. Não mudou nada na essência. Continua o mesmo.

O meu pai chateia muito as pessoas que o chateiam. Escreve cartas para bancos, para agências de viagens. A sua figura de estilo preferida é a ironia, gosta do Eça. Mas o meu pai manda muitas vezes a erudição às urtigas. O meu pai, uma vez, queria andar à porrada numa reunião de condóminos.

O meu pai casou com uma minhota, a minha mãe. E foi recambiado de Lisboa para Guimarães. Hoje vive rodeado de mulheres. E adora uma boa guerra de sexos: passa a vida a dizer que teve tanto azar que lá em casa “até o cão é cadela” (ainda por cima, a Piruças tem muito pêlo na venta).

Lá em casa, o meu pai só trata do vinho. Eu tento até hoje educá-lo, mas não consigo. Na verdade, ele também nunca me obrigou a fazer nada, nem a cama, nem a arrumar a cozinha, nem o quarto. E sempre me deixou ir de pijama para a mesa. E tem gosto em servir-me na mesma o vinho, mesmo que eu esteja com remelas e de pantufas. A verdade é que o meu pai não faz nada lá em casa, mas faz-nos as vontades todas.

O meu pai sempre trabalhou, mesmo à noite e aos fins-de-semana. Quando eu era miúda, ele só tirava 15 dias de férias. Dizia que estava a ganhar a vida. Ganhar a vida para o meu pai significa ganhar dinheiro. E o meu pai não chama dinheiro ao dinheiro, chama-lhe caroço. Se um psicólogo visse aquilo, não aprovaria. Mas o meu pai também não aprova muito a psicologia.

Massacrava-me, a mim e às minhas primas, por causa da nossa pronúncia do Norte e por causa da nossa ignorância em História e Geografia. Chamávamos-lhe o Professor Tonecas.

Quando eu tinha 16 anos, o meu pai ia-me buscar à discoteca às quatro da manhã, com um sobretudo por cima do pijama. E encarou com muito desportivismo as duas vezes em que, no dia da mudança do relógio, o deixei uma hora à seca. Quando entrei no carro, só me disse assim: “Para o ano, já não caio”. Caiu. Ainda hoje se ri disso, aprecia uma boa disputa. O meu pai gosta de se rir dele. E gosta de pessoas que se sabem rir delas. Diz que é sinal de inteligência.

O meu pai é impaciente. Uma vez saiu do carro em plena Avenida D. João IV e mandou parar o trânsito, qual polícia sinaleiro, porque uma senhora não conseguia fazer uma manobra e ele estava farto de esperar. Por acaso, dessa vez não estava com ele, mas já passei por vergonhas semelhantes. O meu pai não quer saber. O meu pai quer lá saber.

O meu pai não é piegas. Por isso não lhe podia escrever um texto piegas. O meu pai não gosta de filmes românticos, a não ser que metessem, há uns anos, a Kim Basinger. O meu pai prefere o Apocalypse Now ou a trilogia do Padrinho – e eu herdei dele esse fraquinho pelos loucos e pelos gangsters do cinema.

O meu pai não se entusiasma muito com as minhas esforçadas tentativas de escrever reportagens de teor literário. Mas gosta muito de ler cada um dos comentários que os leitores fazem aos meus artigos. Se forem insultuosos, melhor. Telefona-me logo a perguntar se já os vi, não vá dar-se o caso de me ter passado despercebido… Diverte-se à brava. O meu pai adora uma boa polémica. Manda-me emails com histórias que acha serem notícia e assina-os Garganta Funda.

O meu pai nunca se preocupou com as adversidades que me surgem no caminho. A única coisa que me sabe dizer, desde miúda, é: “desenrasca-te”. Quando aí aos nove anos tive o meu primeiro arrufo de amor, o meu pai apoiou-me: “Se ele te voltar a chatear, tu diz-me que eu dou-lhe um murro”. Depois reconsiderou: “Dá-lhe antes tu”.

O meu pai ensinou-me a não pensar nos problemas antes de eles chegarem. E quando chegarem? “Logo se vê”.

O meu pai não sabe, mas aprendi com ele que a felicidade depende sobretudo disto: de nos rirmos de nós próprios, de nos desenrascarmos e de não termos medo. Logo se vê. Só não sei, ainda, como o meu pai, não ligar patavina ao que não nos interessa. E ele sabe fazer isso com uma pinta desgraçada. Deviam ver. O meu pai é o maior da rua dele.

E o meu mundo foi, durante muito tempo, do tamanho dessa rua. Já não é. Mas o meu pai continua a ser o maior.

Faz hoje 60 anos.

Verão no Algarve

Tenho mais que fazer, é verdade, mas não me apetece. Desconcentro-me facilmente a ler na praia. O Vargas Llosa que trouxe não vai bem com as conversas da vizinhança no areal, e eu não resisto nunca a arrebitar a orelha para as ouvir. Tenho duas entrevistas de várias horas para passar, e é o que vou fazer já, já a seguir (não vá dar-se o caso de algum dos meus editores estar a ler isto).

Por enquanto, vou só até ali à varanda escrever. Deixo o computador, pego num bloco e numa caneta. É raro fazê-lo assim: no papel e com caneta (trabalho, a tirar notas, não conta). Chama-me à atenção um pai, um ser enorme e peludo, enfiado na piscina das crianças. O filho dele, um ser pequenino e de braçadeiras postas, chora à borda da piscina, a olhar para ele. O caso não é para menos. Se o meu pai estivesse na piscina das crianças eu também me fartaria de chorar.

O pai vira-se de barriga para baixo e, em vez de nadar, dada a altura mínima da água, começa a andar, tocando com as mãos (as patas da frente) no fundo da piscina. A criança tenta chamá-lo à razão: atira-lhe com uma pequena bola colorida à cara e, quando ele se aproxima o suficiente, aperta-lhe o nariz com força. Nada, o pai está contente. E continua a mover-se devagar pela piscina. Parece um tubarão com calções às flores azuis.

O pai-tubarão tenta convencer o miúdo a entrar. Para isso, faz um número: enfia a cabeça dentro de água e começa a mover-se em círculos, para aparecer depois súbita e furiosamente, diante do olhar consternado da criança. O miúdo olha para ele e, logo de seguida, vai a correr para o pé da mãe na espreguiçadeira. Mais uma vez, compreendo a criança.

E compreendo os outros miúdos que estão todos, não na piscina pequena, mas na dos adultos. Movimentam-se freneticamente com as braçadeiras postas - não sei como aguentam tanto tempo naquele ritmo do nadar à cão. Mas que aguentam, aguentam: horas a fio. Tomara eu ter aquele fôlego quando vou praticar para o Clube Nacional de Natação.

O pai, esse, continua dentro da piscina dos pequenos. É mesmo a única criatura lá enfiada. Agora sentou-se, e está a brincar sozinho com a bola. Não, não está a brincar sozinho com a bola. Em bom rigor, ficou a brincar sozinho com a bola.

E só no fim deste texto é que o percebo. Está muito calor. Ali, naquela piscina pequenina, o pai-tubarão com calções às flores azuis está sentado, e fresquinho. Mesmo assim, fico do lado do puto. Se puder optar, quando mergulhar, só pode ser na piscina funda e, se puder optar uma segunda vez, quando crescer, não quero ser grande.  

sábado, 28 de julho de 2012

Verbo desacontecer

Hoje andei atrás do verbo desacontecer. Encontrei-o ontem num livro do Mia Couto e esta manhã ele ainda me acordava. Fui ao dicionário, nem sei bem porquê, mas ele não estava lá. Meti-o no Google, meto tudo no Google – se um dia alguém entrar no meu computador vai ficar chocado com o tipo de pesquisas que faço, só ontem pesquisei ‘gosto de me cortar’, 'Slavoj Zizek psicanálise', ‘Emanuel 18 anos’ (não procurava conteúdos eróticos, mas a notícia do rapaz que não sai de casa), e outras coisas que podem parecer estranhas. Meti então o verbo desacontecer no Google e dei de caras com inúmeras entradas. Preferia não ter dado com tantas, admito. Mesmo assim gosto do verbo,  não me lembro de outro mais bonito para traduzir, entre outros significados possíveis, aquilo que acontece precisamente por não acontecer.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Galhetas e canalhada brava

Na minha terra chama-se canalha às crianças. Só percebi que noutros lugares não era uma palavra carinhosa quando estava a tirar a carta de condução em Coimbra, e o meu instrutor estranhou que eu tivesse exclamado “esta canalha!”, diante de um bando de fedelhos que se atravessou em frente do carro.

A minha avó sempre nos chamou, a mim e às minhas primas, canalha. Às vezes ia mais longe e apelidava-nos mesmo de “canalhada brava”. Na casa dos meus avós sempre houve, nos natais, aniversários e passagens de ano, uma mesa dos adultos e outra da canalha. Nunca ouvi alguém proferir a expressão “a mesa das crianças”. Sempre foi “a mesa da canalha”.

E havia uma hora de irmos todas "recambiadas" para a banheira, quando chegávamos de lábios roxos da praia (só a canalha é que é valente o suficiente para enfrentar o gelo do mar do Norte).

A canalha, como nós éramos, actua em magote: corre nas festas de anos, sua, grita. Meninos e meninas: fica tudo transpirado, com as fraldas de fora, os cordões dos sapatos desapertados e os laços cor-de-rosa tortos na cabeça. Chegávamos ao fim, com as faces vermelhas de tanto brincar, e nunca achávamos que já eram horas de ir embora. A nossa avó já sabia: “A canalha nunca tem pressa.” Quando insistíamos, perguntava: “Mas agora a canalha já dá leis?”

Às vezes, se abusássemos da sorte, ameaçava dar-nos uma galheta, que era uma palavra que, em vez de nos assustar, nos fazia rir. Uma “galheta bem dada” era sempre um motivo de galhofa (galheta e galhofa até são parecidas). Ríamos nós, e ria-se ela.

Ainda hoje acho a palavra galheta cómica. Não gosto tanto da palavra canalha, mas divirto-me com o que cabe dentro dela. Na minha rua, há dois miúdos que passam as tardes a picar-se de bicicleta. No outro dia, um deles declarou alto e bom som: “Já te provei que ando mais do que essa tua trotinete!”. E continuaram naquele despique até o sol se pôr.

Se a minha avó visse aquilo, assomaria à janela para lembrar que já são horas de ir para casa, e acrescentaria o clássico “à noite nunca há pressas”. Quando nos abrisse a porta, avisaria: “Gira já tudo para banheira antes que levem uma galheta”. E nós íamos rir que nem perdidas daquela terrível ameaça. Canalhada brava… E continuaríamos à volta dela, a mostrar a cara e a fugir, só para a ouvirmos dizer outra vez a palavra “galheta”.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Diálogos - Parte II. Em casa.

Afonso, 5 anos: Um dia vou escrever uma canção só com palavras fixes.

Mãe: Ai sim? Então e dá-me um exemplo de uma palavra fixe.

Afonso: Relâmpago.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Diálogo num colégio em Santo Tirso

A Professora: Então, e agora nós vamos perguntar à Maria João se dá muito trabalho escrever uma história. E ela de certeza que nos vai dizer que teve, e tem, de ler muito e escrever muito. Não é, Maria João?

Eu, embalada pelo espírito pedagógico (que rapidamente me sairia furado): Sim, claro. Temos de ler muito. Ler um bocadinho todos os dias, escrever outro bocadinho todos os dias... Sabem que, quando tinha a vossa idade, já sonhava escrever um livro. Só se concretizou agora, que tenho 31 anos, o que prova que, por maiores que sejam as dificuldades, nunca se deve desistir. Porque, se acreditarmos muito, e trabalharmos para isso, os nossos sonhos, por mais impossíveis que nos pareçam, acabam por acontecer.

A menina: Isso é mais ou menos assim, porque eu, por exemplo, até posso sonhar muito que quero voar e não vou ganhar asas. Ou vou?

Eu (trazida à terra por uma criança): Pois, tens alguma razão. É melhor escolher um sonho que não desafie as leis da gravidade e da natureza.

domingo, 17 de junho de 2012

O Gatuno ganhou vida própria

No dia 28 de Junho, vou lançar o meu primeiro livro, com a história que venceu o Prémio Branquinho da Fonseca, atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Jornal Expresso. Chama-se O Gatuno e o Extraterrestre Trombudo e foi uma brincadeira que nasceu numa sala do Chiado, durante um workshop que fiz com o David Machado sobre como escrever um livro infantil.

Tínhamos de levar uma ideia para as sessões e eu cheguei com uma tão disparatada como um gato que acredita que o aspirador que os donos compraram lá para casa é um extraterrestre.

Inspirei-me descaradamente no meu gato preto, o Fellini, que é trapalhão, curioso, desastrado, cómico, meigo, assustadiço, e pouco esperto. A Lolita, a minha gatinha branca, nunca me poderia ter inspirado tal absurdo. Redondinha e com orelhas cor-de-rosa, é uma elegância nos modos. A Piruças, a minha cadela, é uma anarco-rafeira da qual se deve manter alguma distância de segurança. É uma vira-latas desconfiada e imprevisível, como se costuma dizer que são os gatos.

O Gatuno, o nome do gato na história, é portanto o Fellini dos pés à cabeça (ou do focinho às patas, em bom rigor). É uma espécie de alter ego. A única diferença é que o Gatuno é branco, mas isso foi apenas um recurso (e pouco sofisticado) para esconder elementos autobiográficos.

Pois bem, o Gatuno vai ganhar vida própria já a partir do dia 28, com o lançamento do livro na Gulbenkian. É editado pela Dinalivro e as ilustrações são do Paulo Galindro. Já as vi e o Gatuno, acreditem, está mais pateta do que nunca.

Estou feliz com o meu primeiro livro. Gosto do texto, das ilustrações. Gosto do Gatuno como do Fellini, e dos meus bichos todos. Estou feliz por os meus animais terem dado origem ao meu primeiro livro. Juntaram-se duas coisas que tornam a minha vida maior: os livros e a bicharada.

Apesar de adorar o Gatuno, estou morta por vê-lo caminhar pelas suas próprias patas. Gosto de imaginá-lo a entrar por outras casas adentro, e fazer rir as pessoas. O raio do gato está todo contente por se ir embora deste apartamento, deste computador. Tem agora uma morada nova, uma casa ambulante como é um livro.

O Gatuno vai deixar, assim, de ser meu, e de outras pessoas que o acarinharam antes e durante este processo. Ainda bem. Já o estou a ver a sair todo vaidoso das páginas do seu novo livro, para surpreender e divertir os leitores. Conheço-o. Acreditem que vai empenhar-se de todas as formas e feitios para dar corpo à história de que é protagonista. De cada vez que os mais pequenos, e os maiores também, a lerem, vai dar o seu melhor. Espero que o acolham de braços abertos: é um gato cheio de coração, apesar de fazer muitas maldades.

Bem-vindo ao mundo, cabeça-de-noz!

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Curtir o fundo da piscina

A minha vizinha do terceiro andar é professora de música. É uma senhora já de idade que toca muito bem piano. Hoje, domingo, desliguei a televisão e a aparelhagem só para a ouvir. Hesita aqui, repete ali, volta ao mesmo, muda de rumo. E eu, dois andares abaixo, a seguir-lhe os dedos, e a imaginar-lhe a cabeça ora dobrada junto ao piano, ora levantada a balançar.

Ela tem muito bom gosto musical. Algumas pessoas que vieram cá casa já o notaram. Volta e meia está a ouvir jazz, ou então o Hino da Alegria, nas alturas. Fá-lo em dias de sol aberto e à hora de almoço. Se abrir a janela da minha cozinha, a música dela invade-me tudo.

Neste momento, lá está ela, a tocar. Voltou atrás, corrigiu. Vai passar a tarde nisto.

Este som ao longe faz-me lembrar os tempos de Coimbra, em que passava muitas vezes pela rua do antigo Conservatório, e ouvia cá fora as aulas de canto, as vozes a afinarem-se, os violinos a desafinarem-se e os pianos à procura de se soltarem. Mais tarde, vivi lá perto, e adorava quando aquilo tudo me chegava aos ouvidos. Não precisava de ser perfeito, podia chegar aos tropeções que eu gostava na mesma. Talvez tudo isto se deva ao facto de, com alguma pena, nunca ter tido qualquer jeito para música, nem sequer para a flauta do ciclo preparatório, apesar dos incentivos do professor. Os ditados rítmicos eram um suplício. Quando um outro professor de música que tive começava a bater com uma moeda na mesa, eu ficava em pânico sem saber o que escrever no caderno. Para mim, era chinês. Copiava tudo por uma amiga, que percebia bastante daquilo. E ficava deslumbrada com o ouvido dela: como é que ela percebia o que ele estava a dizer, quando batia com uma moeda na mesa?

O talento, o dom de certas pessoas é extraordinário. E não precisa de ser só na música. Outra das artes para a qual nunca tive queda, apesar das aulas na infância, foi para nadar com desenvoltura. Aquele nadar que parece dançar não é comigo. Sei nadar: mal, mas sei. Mergulho de chapa, engulo pirolitos, e, mesmo assim, adoro água, piscina, mar.

Agora, adulta, resolvi voltar à natação para aperfeiçoar a minha técnica, ou não técnica. Inscrevi-me no Clube Nacional de Natação, e frequento as aulas dos adultos. À hora a que vou, à noite, sou quase só eu a chapinhar na piscina e o professor à minha volta a tentar convencer-me de que a minha maior dificuldade é nos bruços, quando essa modalidade é precisamente aquela que acho saber fazer melhor. Ele diz que nado com pés de bailarina, e que tenho de pôr os pés à Charlot. Não consigo, os meus músculos têm uma memória prodigiosa, são muitos anos a nadar mal, digo-lhe eu. E o pior é que, quanto mais me concentro, menos fluído é o meu movimento, mais me descoordeno, criando uma sensação artificial com as pernas que me constrange, prende. Ele diz-me "vá, quatro piscinas": ponho os óculos e começo a nadar para a frente e para trás. Enquanto atravesso a piscina, fixo-me mentalmente nos sapatões do Charlot e nada, zero. Só consigo ser cómica como ele, mas não consigo pôr os pés para fora . As pontas de ballet perseguem-me dentro de água.

Entretanto, àquela hora tardia, já só estão atletas de competição na piscina, a nadar mariposas esplêndidas. Mas nenhum deles consegue as minhas proezas. Primeiro, fazer com que o professor se deite no chão da piscina para me explicar, em seco, os movimentos. Segundo, ouvir da boca do professor que, quando me concentro, nado um misto de mariposa, crol e bruços. É fantástico.

Diz ele que eu tenho de incorporar a técnica e, depois, relaxar. Diz-me assim: “Maria João, pense noutra coisa, curta o fundo da piscina”. Eu bem tento, mas só me vêm à cabeça os sapatos esburacados do Charlot. Ao meu lado, nadam-se mariposas surpreendentes, bruços com elegância e suavidade, crol com rapidez e naturalidade. Vê-se a técnica, a perfeição do movimento, mas mais do que isso: vê-se que estão a curtir o fundo da piscina. Claro que não há talento sem treino. Mas, diante de um talento, quase nos esquecemos do treino que é. Parece tudo orgânico.

Eu, por exemplo, nem dou pelos ensaios da minha vizinha. Ou melhor, dou, mas às tantas, ao fim de uns minutos, é como se não desse. Nesses momentos, em que me esqueço, sei que estou com(o) ela a curtir o fundo da piscina.

sábado, 12 de maio de 2012

O Sassetti na nossa adolescência

Um amigo de infância, o Eduardo, enviou-me ontem uma mensagem. Era um admirador do músico. Assim que soube da morte do Bernardo Sassetti, lembrei-me logo deste meu amigo, que tem um gosto irrepreensível. Estava consternado.

Na mensagem perguntava-me se eu me lembrava, dizia que tinha sido a nossa primeira entrevista. Por acaso, não foi a minha primeira entrevista, respondi-lhe. A minha primeira entrevista foi, de facto, nesse Guimarães Jazz muito longínquo - acho que nem treze anos tinha feito ainda -, mas foi ao Hermeto Pascoal.
Durante a adolescência, tínhamos um grupo que escrevia umas coisas para o jornal local, o Povo de Guimarães. Nesse Guimarães Jazz íamos em bando entrevistar músicos a sério. É muito divertido pensar hoje nas perguntas que um bando de adolescentes em descoberta fazia a artistas como aqueles. Perguntávamos tudo: sobre o amor, sobre deus, sobre a arte. Fazíamos as perguntas mais espantosas, e víamos respostas no que nos diziam. Era um deslumbramento. Era mais poesia do que jornalismo, para ser sincera.
Bom, a primeira entrevista deste bando foi ao Bernardo Sassetti. Eu não fui, infelizmente. Mas ouvi-os nos dias seguintes a contar cada detalhe de cada resposta. Estavam em estado de encantamento. Ainda por cima o Bernardo Sassetti não só tinha talento, como era giro que se fartava. As meninas ficaram enfeitiçadas. Os rapazes também.
Nessa altura usavam-se gravadores com umas cassetes muito pequeninas. Como é evidente, à falta de material, reciclávamos as cassetes, gravando entrevistas umas por cima das outras. Mas havia duas intocáveis: a do Sassetti e a do Hermeto Pascoal. Eram pura magia. Acontece que alguém gravou por cima da do Sassetti e a entrevista dele eclipsou-se. Ninguém queria acreditar. Esse meu amigo de infância não se conformava. Por cima da do Sassetti, foi gravada uma entrevista à Matilde Rosa Araújo. Foi uma boa entrevista também, mas nós éramos adolescentes… Já não queríamos ouvir histórias para a infância. Naquela altura, nada nos tocava como a música, o amor e a poesia.
Naquela altura o bando ficou em estado de enamoramento pelas mãos, pelo piano, pela afabilidade do Sassetti. Será que ele se apercebeu do tamanho daquela inocência?
Já foi há quase 20 anos. Mas esse meu amigo de infância, o Eduardo, não se esqueceu. Enviou-me logo uma mensagem, queria saber se eu me lembrava. Lembro-me perfeitamente. E não estive lá.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Saxofones e comida árabe

No outro dia acusaram-me de fantasiar acerca da minha rua. Desconfiei: Isso é um elogio ou uma acusação? A fantasia é uma coisa, a mentira outra. Uma faz-nos andar para a frente, outra para trás. Admiti: ponho pimenta aqui, açúcar ali. E depois? Na minha rua, há um segurança à porta de um restaurante, mesmo quando está vazio. Claro que, quando passo por lá, invento o resto da história na minha cabeça. Na minha rua, há uma sex shop ao lado de uma livraria de poesia. Quem não fantasia? Há uma loja de coleccionismo: brinquedos antigos, selos, bengalas. Uma vida própria em cada um destes objectos, e não é mentira. Argumentos para um lado, justificações para outro. Disse-lhe: no meu blogue, escrevo o que quiser. É o meu blogue e a rua que está nele é a que vejo, é nela que moro. Não acreditas? A pessoa que duvida da fantasia acabou por concordar: da maior banalidade de uma rua pode nascer um romance, um poema. E não é mentira na mesma. Nem por sombras. Infelizmente nem sequer é o caso: não escrevo romances; muito menos poesia. Depois desta conversa, fui tomar café à esplanada do jardim. A pessoa que duvida da fantasia não vai acreditar, mas em frente ao restaurante de comida árabe do Norte de África, estavam dois homens a tocar saxofone. É verdade, e é fantasia para os meus ouvidos.

domingo, 11 de março de 2012

Blues taxi


Ontem à noite, quando deixei Alfama para trás, apanhei um táxi para casa. Entrei, disse boa noite e o nome da rua. O taxista respondeu-me apenas, com uma voz rouca: “Importa-se que fume?”. Obviamente que não. E lá seguimos, em absoluto silêncio, sem trocar palavra - o que é coisa rara. Mas mais raro e precioso do que o cigarro e o silêncio, eram os blues que se ouviam no rádio. Andar em Lisboa só tem piada se for de táxi, de autocarro, de metro, ou a pé (em dias de sol). De carro, até pode ser muito útil para alguns, mas não tem piada nenhuma. E não é só por causa do trânsito ou da falta de estacionamento. É que, dentro do nosso carro, não há gente assim, como este taxi driver que ouve blues madrugada fora. No fim, despediu-se de mim com um “saúde, menina”.


quarta-feira, 7 de março de 2012

Um namoro entre uma marquise e uma paragem de autocarro

A minha casa tem uma marquise, o que é uma coisa horrível, eu sei. Sim, é daquelas com alumínio e tudo. Mas já tinha, não fui eu que a criei. De qualquer forma, talvez seja por ser tão mal-amada que sinto um certo carinho por ela. Foi o conceito desarrumado e cheio de tralhas da marquise que me inspirou o conto O Gatuno e o extraterrestre trombudo, que venceu o Prémio Branquinho da Fonseca. Não só a marquise em si, mas sobretudo o Fellini nela (o Fellini é um gato curioso e trapalhão; a Lolita é uma princesa delicada. Ele só me inspira histórias absurdas; ela só me faz suspirar).

Os meus gatos, o Fellini e a Lolita, adoram a marquise: com sol até às quatro da tarde, estão sempre lá. Resolvi, agora, juntar-me a eles: fiz mais umas mudanças cá em casa, uma mesa para aqui, outra para ali e criei mais um espaço de trabalho, para além do escritório repleto de livros, discos, cartazes, postais, fotografias e mais qualquer coisa que lá caiba, ao qual costumo chamar “o buraco”.

A marquise tem, de facto, tanta luz que hoje de manhã estive tentada a pôr os óculos de sol para trabalhar. Mas depois pensei que os senhores das obras do prédio ao lado poderiam cair dos andaimes mortos de riso, ao verem-me de óculos de sol e pijama diante do computador.

Mesmo em frente à marquise fica a paragem de autocarro da rua. Há sempre gente lá sentada à espera. Volta e meia, olho para lá, mas eles raramente olham para mim – é impossível competir com os meus gatos, quando eles se exibem vaidosos à janela. Mas isto de estarmos a olhar uns para os outros, sem cortinas, deu-me ideias. Ponho-me aqui a pensar: então, e se eu agora me baixasse, deixando só a mão à vista e me pusesse a acenar? Se os fizesse rir com marionetas? Ou escrevesse nuns cartazes umas frases para animar os dias das pessoas que esperem na paragem de autocarro? E se pusesse uns balões de banda-de-desenhada na janela, dizendo por exemplo “sim, sou um gato, e sei que está a olhar para mim”?

Não sei, agora que me pus a trabalhar na marquise, acho que ela é um óptimo sítio para interagir com as pessoas que passam na rua, mas sobretudo com as que se sentam na paragem de autocarro à espera: 5 minutos, 10 minutos, um quarto de hora... (Está uma senhora a olhar para mim agora!).

A marquise poderia ser assim um sítio de performances, happenings. Hei-de experimentar qualquer coisa um dia destes. E pedirei a um espião, que se disfarce de passageiro à espera do autocarro, para ir para a paragem recolher o espanto (ou não) das pessoas. Mas acho que vão gostar.

Manhattan

The New York Times

quinta-feira, 1 de março de 2012

Conjuntivite e bebedeiras

Esta madrugada acordei sobressaltada com um estrondo enorme e o barulho de um vidro a estilhaçar-se. Saí disparada da cama, ainda sonâmbula, patinei o corredor com as minhas meias de dormir e fui espreitar pelo buraco da porta, à procura não sei bem de quê. Vi que a luz do prédio estava acesa e que havia gente que, entre risos e galhofa, subia de elevador até aos andares superiores. Encolhi os ombros e regressei aos meus lençóis polares, ainda com um pé na realidade e outro no mundo dos sonhos. Tive pesadelos o resto da noite e, quando acordei, não sabia se aquilo tudo tinha de facto acontecido ou se tinha sido fruto da minha imaginação.

O certo é que dormi mal e acordei tarde para a consulta de oftalmologia, marcada para as 9h30 na clínica que fica no segundo andar do prédio, mesmo por cima do meu apartamento. Vesti-me a correr e engoli o pequeno-almoço - posso sair sem banho, sem pão e café nunca. Mas tive o cuidado de lavar os olhos, porque, quer dizer, o doutor ia examiná-los com uma luz para, finalmente, eu poder saber se estão raiados de vermelho devido à loucura ou a uma conjuntivite.

Quando cheguei à clínica, estava tudo num alvoroço a falar dos gatunos e dos drogados que tinham tentado assaltar o prédio, partindo o vidro da porta, o mármore do chão, e salpicado tudo de sangue em redor. Foi só nesse momento que acordei, e exclamei que afinal não tinha sonhado e que tinha ouvido tudo. Não, não tinham sido os drogados, nem tinha sido nenhuma tentativa de assalto. Foi alguém do prédio, porque eu ouvi risos e ouvi o elevador parar tranquilamente algures a partir do terceiro andar.

Entrei para a consulta.

Saí 15 minutos depois, com duas más notícias: não é loucura, é mesmo conjuntivite, e estou proibida de usar lentes durantes três semanas. Ainda de receita na mão e com os óculos, que me ficam tão bem, enfiados na cara, foi-me solenemente comunicado que a administradora do prédio e a polícia estavam à minha espera na entrada do prédio para ouvir o meu testemunho. Lá fui, a ajeitar os óculos.

Estavam lá dois polícias, devidamente fardados, e um outro de calças de ganga e blusão de cabedal. Repeti a história toda: o estrondo, seguido da risota e da entrada no elevador, que terá parado entre o terceiro e o quinto andar. Quando acabei o meu relato, o inspector do casaco de cabedal perguntou à administradora (que estava num desassossego a pensar que se escondia algum cadáver debaixo do pedaço de mármore partido do chão): “Há estudantes no prédio?” Há, no quarto andar, respondeu ela.

Deviam ser umas 10h30 quando os desgraçados do quarto andar, ainda de ressaca, boca seca, feridas na cabeça e nos braços, abriram a porta aos dois polícias… Sonolentos e ensanguentados, não tinham como desmentir: desculpem e tal, desequilibrámo-nos, caímos um por cima do outro e… sim, pagamos tudo.

Fiquei com remorsos: foi o meu testemunho? Não percebo como é que só eu é que ouvi o raio do estrondo! As outras pessoas não acordaram?

Moral da história: neste prédio, só eu e os estudantes é que não tomamos drunfes para dormir. Eu recorro a livros em inglês (embora o objectivo seja treinar, e não adormecer) e eles, enfim, a outras colheitas, que lhes saem bem mais caras.

Quando me cruzar com eles, vou deixar-lhes um aviso: para a próxima, ponham-me um bilhete debaixo da porta a dizer: “Fomos nós, mas por favor, não conte a ninguém. Invente uma história qualquer”. Obviamente que, se me pedirem, não deixarei que a realidade me estrague uma boa história.  

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Sputnik Sweetheart

“So that's how we live our lives. No matter how deep and fatal the loss, no matter how important the thing that's stolen from us - that's snatched right out of our hands - even if we are left completely changed, with only the outer layer of skin from before, we continue to play out our lives this way, in silence. We draw ever nearer to the end of our allotted span of time, bidding it farewell as it trails off behind. Repeating, often adroitly, the endless deeds of the everyday. Leaving behind a feeling of immeasurable emptiness.”
Haruki Murakami

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Último tesão


Alombo contigo há uma porção de anos
e vou-te dizer és um chato
não tens ponta de paciência
para a vida nem para ti próprio

já te ouvi discursos a mandar vir
já te carreguei às costas
bêbedo como um Baco de aldeia
mijando as ceroulas
és um adolescente retardado
faltou-te sempre a quadra do bom senso

vez por outra um livrinho
de versos vez por outra nada
qualquer um do teu tempo
está bastante melhor do que tu
deputado administrador de empresa
ministro da maioria
puta (alguns chegaram a isso)

só tu meu inocente brincas com a neta
açulas o cão pedindo
à família que te ature
o tipo um dia destes morde-te
que é para aprenderes

mas aqui entre amigos
vou-te dizer também
uma coisa importante não cedas
à tentação de mudar
fica nesta pele que é tua

como é que tu escrevias
merdalhem-se uns aos outros

o país mete dó

guarda o último tesão
para mandares
meia dúzia de canalhas à tabua

Fernando Assis Pacheco

Elogio ao amor puro

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há,estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Miguel Esteves Cardoso

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Bairro

Ontem, fui buscar os tapetes à lavandaria.

A senhora perguntou-me: "Mudou-se há pouco, foi? E, então, está a gostar do bairro?"

Fico toda enternecida quando me perguntam se estou a gostar do bairro.