quarta-feira, 21 de março de 2012

Saxofones e comida árabe

No outro dia acusaram-me de fantasiar acerca da minha rua. Desconfiei: Isso é um elogio ou uma acusação? A fantasia é uma coisa, a mentira outra. Uma faz-nos andar para a frente, outra para trás. Admiti: ponho pimenta aqui, açúcar ali. E depois? Na minha rua, há um segurança à porta de um restaurante, mesmo quando está vazio. Claro que, quando passo por lá, invento o resto da história na minha cabeça. Na minha rua, há uma sex shop ao lado de uma livraria de poesia. Quem não fantasia? Há uma loja de coleccionismo: brinquedos antigos, selos, bengalas. Uma vida própria em cada um destes objectos, e não é mentira. Argumentos para um lado, justificações para outro. Disse-lhe: no meu blogue, escrevo o que quiser. É o meu blogue e a rua que está nele é a que vejo, é nela que moro. Não acreditas? A pessoa que duvida da fantasia acabou por concordar: da maior banalidade de uma rua pode nascer um romance, um poema. E não é mentira na mesma. Nem por sombras. Infelizmente nem sequer é o caso: não escrevo romances; muito menos poesia. Depois desta conversa, fui tomar café à esplanada do jardim. A pessoa que duvida da fantasia não vai acreditar, mas em frente ao restaurante de comida árabe do Norte de África, estavam dois homens a tocar saxofone. É verdade, e é fantasia para os meus ouvidos.

domingo, 11 de março de 2012

Blues taxi


Ontem à noite, quando deixei Alfama para trás, apanhei um táxi para casa. Entrei, disse boa noite e o nome da rua. O taxista respondeu-me apenas, com uma voz rouca: “Importa-se que fume?”. Obviamente que não. E lá seguimos, em absoluto silêncio, sem trocar palavra - o que é coisa rara. Mas mais raro e precioso do que o cigarro e o silêncio, eram os blues que se ouviam no rádio. Andar em Lisboa só tem piada se for de táxi, de autocarro, de metro, ou a pé (em dias de sol). De carro, até pode ser muito útil para alguns, mas não tem piada nenhuma. E não é só por causa do trânsito ou da falta de estacionamento. É que, dentro do nosso carro, não há gente assim, como este taxi driver que ouve blues madrugada fora. No fim, despediu-se de mim com um “saúde, menina”.


quarta-feira, 7 de março de 2012

Um namoro entre uma marquise e uma paragem de autocarro

A minha casa tem uma marquise, o que é uma coisa horrível, eu sei. Sim, é daquelas com alumínio e tudo. Mas já tinha, não fui eu que a criei. De qualquer forma, talvez seja por ser tão mal-amada que sinto um certo carinho por ela. Foi o conceito desarrumado e cheio de tralhas da marquise que me inspirou o conto O Gatuno e o extraterrestre trombudo, que venceu o Prémio Branquinho da Fonseca. Não só a marquise em si, mas sobretudo o Fellini nela (o Fellini é um gato curioso e trapalhão; a Lolita é uma princesa delicada. Ele só me inspira histórias absurdas; ela só me faz suspirar).

Os meus gatos, o Fellini e a Lolita, adoram a marquise: com sol até às quatro da tarde, estão sempre lá. Resolvi, agora, juntar-me a eles: fiz mais umas mudanças cá em casa, uma mesa para aqui, outra para ali e criei mais um espaço de trabalho, para além do escritório repleto de livros, discos, cartazes, postais, fotografias e mais qualquer coisa que lá caiba, ao qual costumo chamar “o buraco”.

A marquise tem, de facto, tanta luz que hoje de manhã estive tentada a pôr os óculos de sol para trabalhar. Mas depois pensei que os senhores das obras do prédio ao lado poderiam cair dos andaimes mortos de riso, ao verem-me de óculos de sol e pijama diante do computador.

Mesmo em frente à marquise fica a paragem de autocarro da rua. Há sempre gente lá sentada à espera. Volta e meia, olho para lá, mas eles raramente olham para mim – é impossível competir com os meus gatos, quando eles se exibem vaidosos à janela. Mas isto de estarmos a olhar uns para os outros, sem cortinas, deu-me ideias. Ponho-me aqui a pensar: então, e se eu agora me baixasse, deixando só a mão à vista e me pusesse a acenar? Se os fizesse rir com marionetas? Ou escrevesse nuns cartazes umas frases para animar os dias das pessoas que esperem na paragem de autocarro? E se pusesse uns balões de banda-de-desenhada na janela, dizendo por exemplo “sim, sou um gato, e sei que está a olhar para mim”?

Não sei, agora que me pus a trabalhar na marquise, acho que ela é um óptimo sítio para interagir com as pessoas que passam na rua, mas sobretudo com as que se sentam na paragem de autocarro à espera: 5 minutos, 10 minutos, um quarto de hora... (Está uma senhora a olhar para mim agora!).

A marquise poderia ser assim um sítio de performances, happenings. Hei-de experimentar qualquer coisa um dia destes. E pedirei a um espião, que se disfarce de passageiro à espera do autocarro, para ir para a paragem recolher o espanto (ou não) das pessoas. Mas acho que vão gostar.

Manhattan

The New York Times

quinta-feira, 1 de março de 2012

Conjuntivite e bebedeiras

Esta madrugada acordei sobressaltada com um estrondo enorme e o barulho de um vidro a estilhaçar-se. Saí disparada da cama, ainda sonâmbula, patinei o corredor com as minhas meias de dormir e fui espreitar pelo buraco da porta, à procura não sei bem de quê. Vi que a luz do prédio estava acesa e que havia gente que, entre risos e galhofa, subia de elevador até aos andares superiores. Encolhi os ombros e regressei aos meus lençóis polares, ainda com um pé na realidade e outro no mundo dos sonhos. Tive pesadelos o resto da noite e, quando acordei, não sabia se aquilo tudo tinha de facto acontecido ou se tinha sido fruto da minha imaginação.

O certo é que dormi mal e acordei tarde para a consulta de oftalmologia, marcada para as 9h30 na clínica que fica no segundo andar do prédio, mesmo por cima do meu apartamento. Vesti-me a correr e engoli o pequeno-almoço - posso sair sem banho, sem pão e café nunca. Mas tive o cuidado de lavar os olhos, porque, quer dizer, o doutor ia examiná-los com uma luz para, finalmente, eu poder saber se estão raiados de vermelho devido à loucura ou a uma conjuntivite.

Quando cheguei à clínica, estava tudo num alvoroço a falar dos gatunos e dos drogados que tinham tentado assaltar o prédio, partindo o vidro da porta, o mármore do chão, e salpicado tudo de sangue em redor. Foi só nesse momento que acordei, e exclamei que afinal não tinha sonhado e que tinha ouvido tudo. Não, não tinham sido os drogados, nem tinha sido nenhuma tentativa de assalto. Foi alguém do prédio, porque eu ouvi risos e ouvi o elevador parar tranquilamente algures a partir do terceiro andar.

Entrei para a consulta.

Saí 15 minutos depois, com duas más notícias: não é loucura, é mesmo conjuntivite, e estou proibida de usar lentes durantes três semanas. Ainda de receita na mão e com os óculos, que me ficam tão bem, enfiados na cara, foi-me solenemente comunicado que a administradora do prédio e a polícia estavam à minha espera na entrada do prédio para ouvir o meu testemunho. Lá fui, a ajeitar os óculos.

Estavam lá dois polícias, devidamente fardados, e um outro de calças de ganga e blusão de cabedal. Repeti a história toda: o estrondo, seguido da risota e da entrada no elevador, que terá parado entre o terceiro e o quinto andar. Quando acabei o meu relato, o inspector do casaco de cabedal perguntou à administradora (que estava num desassossego a pensar que se escondia algum cadáver debaixo do pedaço de mármore partido do chão): “Há estudantes no prédio?” Há, no quarto andar, respondeu ela.

Deviam ser umas 10h30 quando os desgraçados do quarto andar, ainda de ressaca, boca seca, feridas na cabeça e nos braços, abriram a porta aos dois polícias… Sonolentos e ensanguentados, não tinham como desmentir: desculpem e tal, desequilibrámo-nos, caímos um por cima do outro e… sim, pagamos tudo.

Fiquei com remorsos: foi o meu testemunho? Não percebo como é que só eu é que ouvi o raio do estrondo! As outras pessoas não acordaram?

Moral da história: neste prédio, só eu e os estudantes é que não tomamos drunfes para dormir. Eu recorro a livros em inglês (embora o objectivo seja treinar, e não adormecer) e eles, enfim, a outras colheitas, que lhes saem bem mais caras.

Quando me cruzar com eles, vou deixar-lhes um aviso: para a próxima, ponham-me um bilhete debaixo da porta a dizer: “Fomos nós, mas por favor, não conte a ninguém. Invente uma história qualquer”. Obviamente que, se me pedirem, não deixarei que a realidade me estrague uma boa história.