Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos:
“Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem,
senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta
saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta.
Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O
vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia
hora, com ele a empurrar-nos, para parecer que tínhamos andado, sei lá, duas
horas. Nem quando fomos à praia, aí perto da sua terra, no Tarrafal, ele
amainou. Dentro de água, nem o sentíamos, mas cá fora a areia colava-se-nos ao
corpo e não havia forma de estarmos deitados ao sol. Ficámos dentro de água, pois
então. E a seguir fomos comer e beber para um restaurante, com vista para a
praia. Comida com vista pelo mar fora é o que não falta em Cabo Verde.
Também fomos visitar o campo de concentração. O seu
sobrinho, que é o músico Maruka, lembra-se de ver os presos políticos saírem. Contou-nos
muitas histórias, o seu sobrinho. E o senhor Mafaldo também. Ficámos a saber
que, na infância, foi com a mãe para uma roça, em São Tomé. Que só o deixaram
acabar a 4.ª classe muito tarde. Mas fê-lo e tornou-se monitor escolar. Ainda
tem os diplomas guardados.
Foi uma boa tarde a ouvir histórias. Quem não gosta delas?
Também falámos daquela lenda sobre a origem de Cabo Verde. Aquela da distracção
divina - lembra-se? Reza assim: quando Deus acabou de criar o mundo, sacudiu as
mãos e caíram pequenos pedacinhos de barro no Atlântico, perto de África. Houve
quem chamasse Deus à atenção por ter sido tão descuidado. “Então e agora que
pessoas vais lá pôr? E que riquezas?” Mas Deus não se atrapalhou e disse que já
havia muito sítio para habitar a terra, que ninguém iria para ali. Enganou-se,
como sabemos. Ou não. Talvez houvesse naquele sacudir de mãos uma intenção
maior. Escreve o cabo-verdiano Germano Almeida: “Criar um laboratório
experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea
poderia sair. E saiu o homem cabo-verdiano.”
O senhor Mafaldo, que é “100 por cento católico”, não
acredita em actos distraídos de Deus. Faz rapidamente contas de cabeça, algures
entre a criação do mundo e a chegada dos portugueses, e acha que algo não bate
certo. “É só uma história”, diz, encolhendo os ombros. Admito que sim, senhor
Mafaldo. É impossível contrariá-lo. Mesmo quando nos diz que cura cancro e sida
só com aloé vera que nasce em frente da sua casa. Como contrariá-lo se fala com
tanta calma e ponderação, se mastiga cada palavra e olha para nós, com uma
expressão nem sei se afável, se séria? Olhe, senhor Mafaldo, não sei se
acredito que uma planta cure cancro e sida, mas acredito em si. Parece a mesma
coisa, mas não é.
Nesse dia, fomos de propósito conhecê-lo. O seu sobrinho,
que é músico e enfermeiro, fez connosco uns bons quilómetros para nos
apresentar o seu tio curandeiro. Foi um prazer conversar consigo, senhor
Mafaldo. E andar pelo seu país. Sabe que mais? Apesar de tão diferente do nosso
em tanta coisa, na paisagem, tão árida – quase não vimos verde – sentimo-nos
próximos de casa. A língua, o Benfica... – meu Deus, eu, que não gosto de
futebol, fiquei envergonhada por não saber, como devia, os médios e avançados
da equipa em todos os jogos.
Sim, é verdade, senhor Mafaldo, quase não fizemos praia. Nem
sequer fomos ao Sal. Mas passeámos pelo Mindelo, pela Baía das Gatas, pela
Cidade da Praia, pelo Tarrafal, pela Cidade Velha… Contra o vento que não
parava. Um vento de São Vicente que não é normal em Santiago, comentava-se nas
ruas. Nas nossas fotografias, as palmeiras estão sempre penteadas só para um
lado.
Quando nos despedimos de si, na Calheta, e regressámos à
Praia, a noite caía. Na escuridão, os montes pareciam bichos meio adormecidos e
as casas com as luzes acesas assemelhavam-se a múltiplos olhos que nos
vigiavam.
E o vento, já sabemos, continuava.
Vamos voltar um dia, senhor Mafaldo. Da próxima vez, vamos
para as praias! E, já sabe, se perder o medo de andar de avião, estamos à sua
espera. Ainda nos disse: “Um dia, meto-me num barco e nem que demore um ano a
chegar, vou. Queria tanto conhecer Portugal”. Venha que vai gostar. Agora, que
penso bem, até o vento temos em comum. Não se chama harmatão nem lestada, nem
vem do Sara, mas também é persistente como o vosso. Pelo menos, nas férias da minha infância, nas
praias do Alto Minho, lembro-me de haver sempre, durante todo o Agosto,
nortada. E sabe que mais, senhor Mafaldo? Também tenho saudades dessas férias.
É engraçado isto, porque não gosto de nada de vento e tenho tantas saudades...
Maria João Lopes
Texto publicado na Fugas a 26 de Março de 2011.
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