segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Morrer de saudade

Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos: “Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem, senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta.
 
Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia hora, com ele a empurrar-nos, para parecer que tínhamos andado, sei lá, duas horas. Nem quando fomos à praia, aí perto da sua terra, no Tarrafal, ele amainou. Dentro de água, nem o sentíamos, mas cá fora a areia colava-se-nos ao corpo e não havia forma de estarmos deitados ao sol. Ficámos dentro de água, pois então. E a seguir fomos comer e beber para um restaurante, com vista para a praia. Comida com vista pelo mar fora é o que não falta em Cabo Verde.
Também fomos visitar o campo de concentração. O seu sobrinho, que é o músico Maruka, lembra-se de ver os presos políticos saírem. Contou-nos muitas histórias, o seu sobrinho. E o senhor Mafaldo também. Ficámos a saber que, na infância, foi com a mãe para uma roça, em São Tomé. Que só o deixaram acabar a 4.ª classe muito tarde. Mas fê-lo e tornou-se monitor escolar. Ainda tem os diplomas guardados.
Foi uma boa tarde a ouvir histórias. Quem não gosta delas? Também falámos daquela lenda sobre a origem de Cabo Verde. Aquela da distracção divina - lembra-se? Reza assim: quando Deus acabou de criar o mundo, sacudiu as mãos e caíram pequenos pedacinhos de barro no Atlântico, perto de África. Houve quem chamasse Deus à atenção por ter sido tão descuidado. “Então e agora que pessoas vais lá pôr? E que riquezas?” Mas Deus não se atrapalhou e disse que já havia muito sítio para habitar a terra, que ninguém iria para ali. Enganou-se, como sabemos. Ou não. Talvez houvesse naquele sacudir de mãos uma intenção maior. Escreve o cabo-verdiano Germano Almeida: “Criar um laboratório experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea poderia sair. E saiu o homem cabo-verdiano.”
O senhor Mafaldo, que é “100 por cento católico”, não acredita em actos distraídos de Deus. Faz rapidamente contas de cabeça, algures entre a criação do mundo e a chegada dos portugueses, e acha que algo não bate certo. “É só uma história”, diz, encolhendo os ombros. Admito que sim, senhor Mafaldo. É impossível contrariá-lo. Mesmo quando nos diz que cura cancro e sida só com aloé vera que nasce em frente da sua casa. Como contrariá-lo se fala com tanta calma e ponderação, se mastiga cada palavra e olha para nós, com uma expressão nem sei se afável, se séria? Olhe, senhor Mafaldo, não sei se acredito que uma planta cure cancro e sida, mas acredito em si. Parece a mesma coisa, mas não é.
Nesse dia, fomos de propósito conhecê-lo. O seu sobrinho, que é músico e enfermeiro, fez connosco uns bons quilómetros para nos apresentar o seu tio curandeiro. Foi um prazer conversar consigo, senhor Mafaldo. E andar pelo seu país. Sabe que mais? Apesar de tão diferente do nosso em tanta coisa, na paisagem, tão árida – quase não vimos verde – sentimo-nos próximos de casa. A língua, o Benfica... – meu Deus, eu, que não gosto de futebol, fiquei envergonhada por não saber, como devia, os médios e avançados da equipa em todos os jogos.
Sim, é verdade, senhor Mafaldo, quase não fizemos praia. Nem sequer fomos ao Sal. Mas passeámos pelo Mindelo, pela Baía das Gatas, pela Cidade da Praia, pelo Tarrafal, pela Cidade Velha… Contra o vento que não parava. Um vento de São Vicente que não é normal em Santiago, comentava-se nas ruas. Nas nossas fotografias, as palmeiras estão sempre penteadas só para um lado.
Quando nos despedimos de si, na Calheta, e regressámos à Praia, a noite caía. Na escuridão, os montes pareciam bichos meio adormecidos e as casas com as luzes acesas assemelhavam-se a múltiplos olhos que nos vigiavam.
E o vento, já sabemos, continuava.
Vamos voltar um dia, senhor Mafaldo. Da próxima vez, vamos para as praias! E, já sabe, se perder o medo de andar de avião, estamos à sua espera. Ainda nos disse: “Um dia, meto-me num barco e nem que demore um ano a chegar, vou. Queria tanto conhecer Portugal”. Venha que vai gostar. Agora, que penso bem, até o vento temos em comum. Não se chama harmatão nem lestada, nem vem do Sara, mas também é persistente como o vosso.  Pelo menos, nas férias da minha infância, nas praias do Alto Minho, lembro-me de haver sempre, durante todo o Agosto, nortada. E sabe que mais, senhor Mafaldo? Também tenho saudades dessas férias. É engraçado isto, porque não gosto de nada de vento e tenho tantas saudades...

Maria João Lopes

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