Na noite em que deixei Roma para
trás, depois de lá ter vivido um ano, olhei para a Fontana de Trevi e não deitei
a moeda. Armei-me em esperta, porque diz o adágio que quem deita a moeda
regressa. Fiz de propósito, naquela noite tinha a certeza que voltaria
e, por isso, podia guardar a moeda no bolso e ir comer um gelado. Já lá vão 10
anos, mais coisa, menos coisa. E nada. Nunca mais voltei. Ando com
aquela moeda entalada na garganta. Nunca mais voltei a Roma, nem a Itália, onde -
apesar de ter ido para lá estudar - fiz das melhores férias da minha vida: entre a
Sardenha e a Sicília, a ver nascer o sol em barcos, a dormir nas praias à noite,
a acordar às seis da manhã e a ter o mar só para mim e para os meus amigos, a
andar à boleia por montes perdidos na Sicília em carrinhas de caixa aberta
tapadas por uma lona. Não víamos nada lá para fora, íamos aos rebolões lá
dentro. Os condutores gritavam-nos: Tutto bene? E nós, perdidos de tudo menos
de medo, respondíamos: Tutto! Nunca mais voltei a Roma, nem a Itália. E Itália
é o país mais bonito que já visitei. Roma a cidade onde, se pudesse,
gostava de viver. Mas Roma e Lisboa devem ser primas, por isso também gosto de
estar aqui. Nos próximos dias, dez anos depois, vou finalmente regressar a Itália: a Veneza e a Bolonha. Vai
ser bom, pelo menos vou ver a língua, ouvi-los cantar, porque falar, falam com
as mãos. A língua e a comida, pelo menos em Itália, também são primas. Mas não
vai ser Roma ainda, Roma cheia de gatos, e eu ando com Roma aqui, bem atravessada na
garganta. Tento não forçar o encontro, porque a fonte se iria rir de mim. Mas
se a vida não me levar, pois bem, terei de me meter num avião (e ir lá deixar a
moeda).
"Tudo me espanta, gramo a vida, quero morrer mais lá para o Verão." (Fernando Assis Pacheco)
quarta-feira, 20 de março de 2013
segunda-feira, 4 de março de 2013
Piruças
A minha anarco-rafeira, que foi
apanhada na rua, já tem 15 anos. Quem a conhece sabe bem como aquela vira-latas
conseguia, durante os anos de juventude, transformar tudo à volta num alvoroço:
andava sempre a 200 à hora e arrebitava cachimbo para todo o lado. Insubmissa,
desobediente, cómica, porque pequena, era um terror próximo do desenho animado.
Agora, já não é assim. Velhinha e com o pêlo branco, passa os dias deitada. Já
não consegue subir bem para a cama, volta e meia cai nas escadas e fica à
espera que a vamos buscar. No outro dia, nem reagiu quando levámos a Nico, a
gata da minha prima, lá para casa. Apesar de agora na velhice ter, pelos vistos, aprendido
a aceitar mais, a ladrar e a rosnar menos, posso dizer que nunca conheci uma
cadela tão punk como a minha. E,
claro, nunca me lembrei que ela fosse envelhecer.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Morrer de saudade
Quando se despediu de nós, o senhor Mafaldo disse-nos:
“Escrevam-me uma carta, não me deixem morrer de tanta saudade”. Pois bem,
senhor Mafaldo, cá vai. Escrevemos-lhe para não morrermos nós, também, de tanta
saudade. Até do vento que nos fustigou em Cabo Verde sentimos falta.
Estivemos aí na época da bruma seca ou tempo das brisas. O
vento não nos deu descanso. Era de dia e de noite. Bastava andarmos a pé meia
hora, com ele a empurrar-nos, para parecer que tínhamos andado, sei lá, duas
horas. Nem quando fomos à praia, aí perto da sua terra, no Tarrafal, ele
amainou. Dentro de água, nem o sentíamos, mas cá fora a areia colava-se-nos ao
corpo e não havia forma de estarmos deitados ao sol. Ficámos dentro de água, pois
então. E a seguir fomos comer e beber para um restaurante, com vista para a
praia. Comida com vista pelo mar fora é o que não falta em Cabo Verde.
Também fomos visitar o campo de concentração. O seu
sobrinho, que é o músico Maruka, lembra-se de ver os presos políticos saírem. Contou-nos
muitas histórias, o seu sobrinho. E o senhor Mafaldo também. Ficámos a saber
que, na infância, foi com a mãe para uma roça, em São Tomé. Que só o deixaram
acabar a 4.ª classe muito tarde. Mas fê-lo e tornou-se monitor escolar. Ainda
tem os diplomas guardados.
Foi uma boa tarde a ouvir histórias. Quem não gosta delas?
Também falámos daquela lenda sobre a origem de Cabo Verde. Aquela da distracção
divina - lembra-se? Reza assim: quando Deus acabou de criar o mundo, sacudiu as
mãos e caíram pequenos pedacinhos de barro no Atlântico, perto de África. Houve
quem chamasse Deus à atenção por ter sido tão descuidado. “Então e agora que
pessoas vais lá pôr? E que riquezas?” Mas Deus não se atrapalhou e disse que já
havia muito sítio para habitar a terra, que ninguém iria para ali. Enganou-se,
como sabemos. Ou não. Talvez houvesse naquele sacudir de mãos uma intenção
maior. Escreve o cabo-verdiano Germano Almeida: “Criar um laboratório
experimental de miscigenação de raças e culturas e ver o que dessa miscelânea
poderia sair. E saiu o homem cabo-verdiano.”
O senhor Mafaldo, que é “100 por cento católico”, não
acredita em actos distraídos de Deus. Faz rapidamente contas de cabeça, algures
entre a criação do mundo e a chegada dos portugueses, e acha que algo não bate
certo. “É só uma história”, diz, encolhendo os ombros. Admito que sim, senhor
Mafaldo. É impossível contrariá-lo. Mesmo quando nos diz que cura cancro e sida
só com aloé vera que nasce em frente da sua casa. Como contrariá-lo se fala com
tanta calma e ponderação, se mastiga cada palavra e olha para nós, com uma
expressão nem sei se afável, se séria? Olhe, senhor Mafaldo, não sei se
acredito que uma planta cure cancro e sida, mas acredito em si. Parece a mesma
coisa, mas não é.
Nesse dia, fomos de propósito conhecê-lo. O seu sobrinho,
que é músico e enfermeiro, fez connosco uns bons quilómetros para nos
apresentar o seu tio curandeiro. Foi um prazer conversar consigo, senhor
Mafaldo. E andar pelo seu país. Sabe que mais? Apesar de tão diferente do nosso
em tanta coisa, na paisagem, tão árida – quase não vimos verde – sentimo-nos
próximos de casa. A língua, o Benfica... – meu Deus, eu, que não gosto de
futebol, fiquei envergonhada por não saber, como devia, os médios e avançados
da equipa em todos os jogos.
Sim, é verdade, senhor Mafaldo, quase não fizemos praia. Nem
sequer fomos ao Sal. Mas passeámos pelo Mindelo, pela Baía das Gatas, pela
Cidade da Praia, pelo Tarrafal, pela Cidade Velha… Contra o vento que não
parava. Um vento de São Vicente que não é normal em Santiago, comentava-se nas
ruas. Nas nossas fotografias, as palmeiras estão sempre penteadas só para um
lado.
Quando nos despedimos de si, na Calheta, e regressámos à
Praia, a noite caía. Na escuridão, os montes pareciam bichos meio adormecidos e
as casas com as luzes acesas assemelhavam-se a múltiplos olhos que nos
vigiavam.
E o vento, já sabemos, continuava.
Vamos voltar um dia, senhor Mafaldo. Da próxima vez, vamos
para as praias! E, já sabe, se perder o medo de andar de avião, estamos à sua
espera. Ainda nos disse: “Um dia, meto-me num barco e nem que demore um ano a
chegar, vou. Queria tanto conhecer Portugal”. Venha que vai gostar. Agora, que
penso bem, até o vento temos em comum. Não se chama harmatão nem lestada, nem
vem do Sara, mas também é persistente como o vosso. Pelo menos, nas férias da minha infância, nas
praias do Alto Minho, lembro-me de haver sempre, durante todo o Agosto,
nortada. E sabe que mais, senhor Mafaldo? Também tenho saudades dessas férias.
É engraçado isto, porque não gosto de nada de vento e tenho tantas saudades...
Maria João Lopes
terça-feira, 21 de agosto de 2012
O meu pai
O meu pai, conta a minha mãe, nunca me mudou uma fralda. E acho que só tenho uma fotografia ao colo dele, muito bebé. Mas tirava-me muitas fotografias e, quando eu tinha medo do escuro, ficava de mão dada comigo até eu adormecer. Que remédio, não podia ser sempre a minha mãe. Contava-me histórias à noite e aldrabava tudo. Não tinha sucesso, eu sabia cada palavra de cor.
O meu pai sempre gostou de me espetar petas: quando eu era miúda, disse que me ia dar um crocodilo e que íamos passeá-lo de trela para o Toural. Perguntei onde é que o íamos pôr, ele disse no terraço. Acreditei. Anos mais tarde, na minha adolescência, comprou-me uma viola para as minhas aulas. Disse-me que era uma Fender Stratocaster e deixou-me espalhar o mito. Só descobri que era mentira quando o meu avô paterno – que tocava guitarra portuguesa – se riu muito ao ouvir a suposta marca da guitarra.
O meu pai sempre murmurou palavrões ao volante, no trânsito, quando me levava à escola de manhã. E sempre teve um carinho especial pelos meninos que faziam diabruras nas aulas. Gostava dos malcomportados. Ele próprio orgulha-se das suas façanhas: quando andava no liceu, levou um vinil do Jimi Hendrix, com mulheres nuas na capa, para uma aula dada por um padre. Pousou o disco na mesa, sabendo que o padre o iria virar ao contrário quando passasse e visse as maminhas ao léu. Acertou. O meu pai adora arreliar as pessoas. E adora vinis. Deu-me o Kind of Blue do Miles Davis em vinil e em cd. Há coisas que nunca são de mais.
O meu pai nunca me inspirou confiança quando me dava dicas para os testes. Contestava as teorias todas que nos ensinavam em História - se eu as escrevesse seria certamente chamada à parte pelos professores. Uma vez, na primária, deu-me uma caneta de tinta permanente para as mãos e eu borratei a cópia toda. A professora disse-me para não usar mais canetas daquelas. Outra vez, a minha mãe, que estava ocupada, pediu-lhe para me fazer perguntas antes do teste de Ciências…Riscou-me o livro todo, a explicar-me como é que se estudava: setas para um lado, sublinhados para outro. Eu repetia-lhe que já tinha estudado, que só queria que me fizesse perguntas. Às tantas, fartou-se e disse-me assim: “Vamo-nos baldar para isto?” Claro que fui logo, disparada, contar à minha mãe.
O meu pai resistiu até à última, quando fiz uma birra porque queria ir de anjo na procissão da catequese. Para o meu pai, não devia haver pesadelo maior do que passar um sábado ou um domingo lá na paróquia, no meio de crianças vestidas de anjos e de nossas senhoras. Só me dizia: “Mas que grande frete”. Lá acabei por convencê-lo, mas chegámos tão tarde que já não havia fatiota para mim.
O meu pai tentava antes convencer-me a alinhar noutros programas. Queria, por exemplo, que fosse com ele a um concerto dos Rolling Stones, quando eu ainda andava para aí na quarta classe. Persuadiu-me de todas as formas, disse-me que eles usavam umas bonecas insufláveis, gigantes, no espectáculo. Nada, foi sozinho. Mais tarde, quando eu tinha aí uns 12 anos, já não sei precisar, sabendo que eu gostava (na altura!) de Guns N’Roses, comprou logo bilhetes. O Expresso escrevia que vinha aí a banda mais perigosa do planeta. Falava-se que a pala de uma das bancadas do estádio de Alvalade não oferecia segurança. E o meu pai como um peixe na água. Pouco tempo depois, entre outros concertos, fomos também juntos aos U2. Em nenhum dos casos era música que o meu pai apreciasse particularmente, mas era sem dúvida um programa melhor do que as procissões da catequese.
O meu pai sempre resolveu problemas num instante, e com grande sabedoria. Recordo-me, por exemplo, da forma como rapidamente me sossegou quando, na primeira classe, tropecei na mochila de uma amiga, caí na sala de aula, e abri a parte superior do lábio. Quando o meu pai chegou à escola, eu estava agarrada à professora, e não parava de chorar. Ele agradeceu o cuidado, meteu-me no carro e, como eu não me calava, perguntou-me: “Queres ir ao hospital levar pontos nisso ou queres uma super gorila?”. Eu parei de chorar e, com uma voz ainda muito sofrida, respondi: “Uma super gorila”. Tenho pena que a minha cicatriz já quase não se note hoje, porque, quando alguém repara nela, gosto de me lembrar que as nossas piores dores podem passar com algo tão simples como uma pastilha elástica. E cicatrizar por si.
Mais tarde, quando comecei a viajar sozinha, o meu pai nunca se preocupou em saber se eu tinha comido ou dormido bem. O que queria - e quer - saber é se, por exemplo, estou a levar com 50 graus em Marrocos. Isso é que o deixa bem-disposto. O meu pai compreende-me se eu gastar seis euros a beber um café na Piazza Navona e depois tiver de dormir o resto das férias na praia, ao relento. O assim-assim não vale a pena.O meu pai é politicamente incorrecto. Responde torto quando lhe apetece. Gosta do azedume do Vasco Pulido Valente e do catastrofismo do Medina Carreira. O meu pai não gosta de paninhos quentes.
O meu pai não tem medo de envelhecer. Gosta de se auto-intitular “o velhote”. O meu pai só não gosta é que lhe digam que é parecido com o Guterres. De facto, de cara são parecidos (e eu sou a cara chapada do meu pai…), mas o meu pai é bem mais alto. Apesar dessas semelhanças, quando olho para o meu pai, não consigo ver o Guterres, mas o Mick Jagger. O meu pai ouve música nas alturas no carro. Antigamente ouvia rock nas alturas em casa, com phones– e sem eles, quando a minha mãe saía. Hoje ouve ópera. Não mudou nada na essência. Continua o mesmo.
O meu pai chateia muito as pessoas que o chateiam. Escreve cartas para bancos, para agências de viagens. A sua figura de estilo preferida é a ironia, gosta do Eça. Mas o meu pai manda muitas vezes a erudição às urtigas. O meu pai, uma vez, queria andar à porrada numa reunião de condóminos.
O meu pai casou com uma minhota, a minha mãe. E foi recambiado de Lisboa para Guimarães. Hoje vive rodeado de mulheres. E adora uma boa guerra de sexos: passa a vida a dizer que teve tanto azar que lá em casa “até o cão é cadela” (ainda por cima, a Piruças tem muito pêlo na venta).
Lá em casa, o meu pai só trata do vinho. Eu tento até hoje educá-lo, mas não consigo. Na verdade, ele também nunca me obrigou a fazer nada, nem a cama, nem a arrumar a cozinha, nem o quarto. E sempre me deixou ir de pijama para a mesa. E tem gosto em servir-me na mesma o vinho, mesmo que eu esteja com remelas e de pantufas. A verdade é que o meu pai não faz nada lá em casa, mas faz-nos as vontades todas.
O meu pai sempre trabalhou, mesmo à noite e aos fins-de-semana. Quando eu era miúda, ele só tirava 15 dias de férias. Dizia que estava a ganhar a vida. Ganhar a vida para o meu pai significa ganhar dinheiro. E o meu pai não chama dinheiro ao dinheiro, chama-lhe caroço. Se um psicólogo visse aquilo, não aprovaria. Mas o meu pai também não aprova muito a psicologia.
Massacrava-me, a mim e às minhas primas, por causa da nossa pronúncia do Norte e por causa da nossa ignorância em História e Geografia. Chamávamos-lhe o Professor Tonecas.
Quando eu tinha 16 anos, o meu pai ia-me buscar à discoteca às quatro da manhã, com um sobretudo por cima do pijama. E encarou com muito desportivismo as duas vezes em que, no dia da mudança do relógio, o deixei uma hora à seca. Quando entrei no carro, só me disse assim: “Para o ano, já não caio”. Caiu. Ainda hoje se ri disso, aprecia uma boa disputa. O meu pai gosta de se rir dele. E gosta de pessoas que se sabem rir delas. Diz que é sinal de inteligência.
O meu pai é impaciente. Uma vez saiu do carro em plena Avenida D. João IV e mandou parar o trânsito, qual polícia sinaleiro, porque uma senhora não conseguia fazer uma manobra e ele estava farto de esperar. Por acaso, dessa vez não estava com ele, mas já passei por vergonhas semelhantes. O meu pai não quer saber. O meu pai quer lá saber.
O meu pai não é piegas. Por isso não lhe podia escrever um texto piegas. O meu pai não gosta de filmes românticos, a não ser que metessem, há uns anos, a Kim Basinger. O meu pai prefere o Apocalypse Now ou a trilogia do Padrinho – e eu herdei dele esse fraquinho pelos loucos e pelos gangsters do cinema.
O meu pai não se entusiasma muito com as minhas esforçadas tentativas de escrever reportagens de teor literário. Mas gosta muito de ler cada um dos comentários que os leitores fazem aos meus artigos. Se forem insultuosos, melhor. Telefona-me logo a perguntar se já os vi, não vá dar-se o caso de me ter passado despercebido… Diverte-se à brava. O meu pai adora uma boa polémica. Manda-me emails com histórias que acha serem notícia e assina-os Garganta Funda.
O meu pai nunca se preocupou com as adversidades que me surgem no caminho. A única coisa que me sabe dizer, desde miúda, é: “desenrasca-te”. Quando aí aos nove anos tive o meu primeiro arrufo de amor, o meu pai apoiou-me: “Se ele te voltar a chatear, tu diz-me que eu dou-lhe um murro”. Depois reconsiderou: “Dá-lhe antes tu”.
O meu pai ensinou-me a não pensar nos problemas antes de eles chegarem. E quando chegarem? “Logo se vê”.
O meu pai não sabe, mas aprendi com ele que a felicidade depende sobretudo disto: de nos rirmos de nós próprios, de nos desenrascarmos e de não termos medo. Logo se vê. Só não sei, ainda, como o meu pai, não ligar patavina ao que não nos interessa. E ele sabe fazer isso com uma pinta desgraçada. Deviam ver. O meu pai é o maior da rua dele.
E o meu mundo foi, durante muito tempo, do tamanho dessa rua. Já não é. Mas o meu pai continua a ser o maior.
Faz hoje 60 anos.
Verão no Algarve
Tenho mais que fazer, é
verdade, mas não me apetece. Desconcentro-me facilmente a ler na praia. O Vargas
Llosa que trouxe não vai bem com as conversas da vizinhança no areal, e eu não resisto
nunca a arrebitar a orelha para as ouvir. Tenho duas entrevistas de várias horas
para passar, e é o que vou fazer já, já a seguir (não vá dar-se o caso de algum
dos meus editores estar a ler isto).
Por enquanto, vou só
até ali à varanda escrever. Deixo o computador, pego num bloco e numa caneta. É
raro fazê-lo assim: no papel e com caneta (trabalho, a tirar notas, não conta).
Chama-me à atenção um pai, um ser enorme e peludo, enfiado na piscina das
crianças. O filho dele, um ser pequenino e de braçadeiras postas, chora à borda
da piscina, a olhar para ele. O caso não é para menos. Se o meu pai estivesse
na piscina das crianças eu também me fartaria de chorar.
O pai vira-se de
barriga para baixo e, em vez de nadar, dada a altura mínima da água, começa a
andar, tocando com as mãos (as patas da frente) no fundo da piscina. A criança
tenta chamá-lo à razão: atira-lhe com uma pequena bola colorida à cara e,
quando ele se aproxima o suficiente, aperta-lhe o nariz com força. Nada, o pai
está contente. E continua a mover-se devagar pela piscina. Parece um tubarão
com calções às flores azuis.
O pai-tubarão tenta
convencer o miúdo a entrar. Para isso, faz um número: enfia a cabeça dentro de
água e começa a mover-se em círculos, para aparecer depois súbita e
furiosamente, diante do olhar consternado da criança. O miúdo olha para ele e,
logo de seguida, vai a correr para o pé da mãe na espreguiçadeira. Mais uma
vez, compreendo a criança.
E compreendo os outros
miúdos que estão todos, não na piscina pequena, mas na dos adultos.
Movimentam-se freneticamente com as braçadeiras postas - não sei como aguentam
tanto tempo naquele ritmo do nadar à cão. Mas que aguentam, aguentam: horas a
fio. Tomara eu ter aquele fôlego quando vou praticar para o Clube Nacional de
Natação.
O pai, esse, continua
dentro da piscina dos pequenos. É mesmo a única criatura lá enfiada. Agora sentou-se,
e está a brincar sozinho com a bola. Não, não está a brincar sozinho com a
bola. Em bom rigor, ficou a brincar sozinho com a bola.
E só no fim deste texto
é que o percebo. Está muito calor. Ali, naquela piscina pequenina, o pai-tubarão
com calções às flores azuis está sentado, e fresquinho. Mesmo assim, fico do
lado do puto. Se puder optar, quando mergulhar, só pode ser na piscina funda e,
se puder optar uma segunda vez, quando crescer, não quero ser grande.
sábado, 28 de julho de 2012
Verbo desacontecer
Hoje
andei atrás do verbo desacontecer. Encontrei-o ontem num livro do Mia Couto e esta
manhã ele ainda me acordava. Fui ao dicionário, nem sei bem porquê, mas ele não
estava lá. Meti-o no Google, meto tudo no Google – se um dia alguém entrar no
meu computador vai ficar chocado com o tipo de pesquisas que faço, só ontem
pesquisei ‘gosto de me cortar’, 'Slavoj Zizek psicanálise', ‘Emanuel 18 anos’
(não procurava conteúdos eróticos, mas a notícia do rapaz que não sai de casa),
e outras coisas que podem parecer estranhas. Meti então o verbo desacontecer no
Google e dei de caras com inúmeras entradas. Preferia não ter dado com tantas,
admito. Mesmo assim gosto do verbo, não me lembro de
outro mais bonito para traduzir, entre outros significados possíveis, aquilo que acontece precisamente por não acontecer.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Galhetas e canalhada brava
Na minha terra chama-se
canalha às crianças. Só percebi que noutros lugares não era uma palavra
carinhosa quando estava a tirar a carta de condução em Coimbra, e o meu
instrutor estranhou que eu tivesse exclamado “esta canalha!”, diante de um
bando de fedelhos que se atravessou em frente do carro.
A minha avó sempre nos chamou, a mim e às minhas primas, canalha. Às vezes ia mais longe e apelidava-nos mesmo de “canalhada brava”. Na casa dos meus avós sempre houve, nos natais, aniversários e passagens de ano, uma mesa dos adultos e outra da canalha. Nunca ouvi alguém proferir a expressão “a mesa das crianças”. Sempre foi “a mesa da canalha”.
E havia uma hora de irmos todas "recambiadas" para a banheira, quando chegávamos de lábios roxos da praia (só a canalha é que é valente o suficiente para enfrentar o gelo do mar do Norte).
A canalha, como nós éramos, actua em magote: corre nas festas de anos, sua, grita. Meninos e meninas: fica tudo transpirado, com as fraldas de fora, os cordões dos sapatos desapertados e os laços cor-de-rosa tortos na cabeça. Chegávamos ao fim, com as faces vermelhas de tanto brincar, e nunca achávamos que já eram horas de ir embora. A nossa avó já sabia: “A canalha nunca tem pressa.” Quando insistíamos, perguntava: “Mas agora a canalha já dá leis?”
Às vezes, se abusássemos da sorte, ameaçava dar-nos uma galheta, que era uma palavra que, em vez de nos assustar, nos fazia rir. Uma “galheta bem dada” era sempre um motivo de galhofa (galheta e galhofa até são parecidas). Ríamos nós, e ria-se ela.
Ainda hoje acho a palavra galheta cómica. Não gosto tanto da palavra canalha, mas divirto-me com o que cabe dentro dela. Na minha rua, há dois miúdos que passam as tardes a picar-se de bicicleta. No outro dia, um deles declarou alto e bom som: “Já te provei que ando mais do que essa tua trotinete!”. E continuaram naquele despique até o sol se pôr.
Se a minha avó visse aquilo, assomaria à janela para lembrar que já são horas de ir para casa, e acrescentaria o clássico “à noite nunca há pressas”. Quando nos abrisse a porta, avisaria: “Gira já tudo para banheira antes que levem uma galheta”. E nós íamos rir que nem perdidas daquela terrível ameaça. Canalhada brava… E continuaríamos à volta dela, a mostrar a cara e a fugir, só para a ouvirmos dizer outra vez a palavra “galheta”.
A minha avó sempre nos chamou, a mim e às minhas primas, canalha. Às vezes ia mais longe e apelidava-nos mesmo de “canalhada brava”. Na casa dos meus avós sempre houve, nos natais, aniversários e passagens de ano, uma mesa dos adultos e outra da canalha. Nunca ouvi alguém proferir a expressão “a mesa das crianças”. Sempre foi “a mesa da canalha”.
E havia uma hora de irmos todas "recambiadas" para a banheira, quando chegávamos de lábios roxos da praia (só a canalha é que é valente o suficiente para enfrentar o gelo do mar do Norte).
A canalha, como nós éramos, actua em magote: corre nas festas de anos, sua, grita. Meninos e meninas: fica tudo transpirado, com as fraldas de fora, os cordões dos sapatos desapertados e os laços cor-de-rosa tortos na cabeça. Chegávamos ao fim, com as faces vermelhas de tanto brincar, e nunca achávamos que já eram horas de ir embora. A nossa avó já sabia: “A canalha nunca tem pressa.” Quando insistíamos, perguntava: “Mas agora a canalha já dá leis?”
Às vezes, se abusássemos da sorte, ameaçava dar-nos uma galheta, que era uma palavra que, em vez de nos assustar, nos fazia rir. Uma “galheta bem dada” era sempre um motivo de galhofa (galheta e galhofa até são parecidas). Ríamos nós, e ria-se ela.
Ainda hoje acho a palavra galheta cómica. Não gosto tanto da palavra canalha, mas divirto-me com o que cabe dentro dela. Na minha rua, há dois miúdos que passam as tardes a picar-se de bicicleta. No outro dia, um deles declarou alto e bom som: “Já te provei que ando mais do que essa tua trotinete!”. E continuaram naquele despique até o sol se pôr.
Se a minha avó visse aquilo, assomaria à janela para lembrar que já são horas de ir para casa, e acrescentaria o clássico “à noite nunca há pressas”. Quando nos abrisse a porta, avisaria: “Gira já tudo para banheira antes que levem uma galheta”. E nós íamos rir que nem perdidas daquela terrível ameaça. Canalhada brava… E continuaríamos à volta dela, a mostrar a cara e a fugir, só para a ouvirmos dizer outra vez a palavra “galheta”.
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