Hoje
andei atrás do verbo desacontecer. Encontrei-o ontem num livro do Mia Couto e esta
manhã ele ainda me acordava. Fui ao dicionário, nem sei bem porquê, mas ele não
estava lá. Meti-o no Google, meto tudo no Google – se um dia alguém entrar no
meu computador vai ficar chocado com o tipo de pesquisas que faço, só ontem
pesquisei ‘gosto de me cortar’, 'Slavoj Zizek psicanálise', ‘Emanuel 18 anos’
(não procurava conteúdos eróticos, mas a notícia do rapaz que não sai de casa),
e outras coisas que podem parecer estranhas. Meti então o verbo desacontecer no
Google e dei de caras com inúmeras entradas. Preferia não ter dado com tantas,
admito. Mesmo assim gosto do verbo, não me lembro de
outro mais bonito para traduzir, entre outros significados possíveis, aquilo que acontece precisamente por não acontecer.
"Tudo me espanta, gramo a vida, quero morrer mais lá para o Verão." (Fernando Assis Pacheco)
sábado, 28 de julho de 2012
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Galhetas e canalhada brava
Na minha terra chama-se
canalha às crianças. Só percebi que noutros lugares não era uma palavra
carinhosa quando estava a tirar a carta de condução em Coimbra, e o meu
instrutor estranhou que eu tivesse exclamado “esta canalha!”, diante de um
bando de fedelhos que se atravessou em frente do carro.
A minha avó sempre nos chamou, a mim e às minhas primas, canalha. Às vezes ia mais longe e apelidava-nos mesmo de “canalhada brava”. Na casa dos meus avós sempre houve, nos natais, aniversários e passagens de ano, uma mesa dos adultos e outra da canalha. Nunca ouvi alguém proferir a expressão “a mesa das crianças”. Sempre foi “a mesa da canalha”.
E havia uma hora de irmos todas "recambiadas" para a banheira, quando chegávamos de lábios roxos da praia (só a canalha é que é valente o suficiente para enfrentar o gelo do mar do Norte).
A canalha, como nós éramos, actua em magote: corre nas festas de anos, sua, grita. Meninos e meninas: fica tudo transpirado, com as fraldas de fora, os cordões dos sapatos desapertados e os laços cor-de-rosa tortos na cabeça. Chegávamos ao fim, com as faces vermelhas de tanto brincar, e nunca achávamos que já eram horas de ir embora. A nossa avó já sabia: “A canalha nunca tem pressa.” Quando insistíamos, perguntava: “Mas agora a canalha já dá leis?”
Às vezes, se abusássemos da sorte, ameaçava dar-nos uma galheta, que era uma palavra que, em vez de nos assustar, nos fazia rir. Uma “galheta bem dada” era sempre um motivo de galhofa (galheta e galhofa até são parecidas). Ríamos nós, e ria-se ela.
Ainda hoje acho a palavra galheta cómica. Não gosto tanto da palavra canalha, mas divirto-me com o que cabe dentro dela. Na minha rua, há dois miúdos que passam as tardes a picar-se de bicicleta. No outro dia, um deles declarou alto e bom som: “Já te provei que ando mais do que essa tua trotinete!”. E continuaram naquele despique até o sol se pôr.
Se a minha avó visse aquilo, assomaria à janela para lembrar que já são horas de ir para casa, e acrescentaria o clássico “à noite nunca há pressas”. Quando nos abrisse a porta, avisaria: “Gira já tudo para banheira antes que levem uma galheta”. E nós íamos rir que nem perdidas daquela terrível ameaça. Canalhada brava… E continuaríamos à volta dela, a mostrar a cara e a fugir, só para a ouvirmos dizer outra vez a palavra “galheta”.
A minha avó sempre nos chamou, a mim e às minhas primas, canalha. Às vezes ia mais longe e apelidava-nos mesmo de “canalhada brava”. Na casa dos meus avós sempre houve, nos natais, aniversários e passagens de ano, uma mesa dos adultos e outra da canalha. Nunca ouvi alguém proferir a expressão “a mesa das crianças”. Sempre foi “a mesa da canalha”.
E havia uma hora de irmos todas "recambiadas" para a banheira, quando chegávamos de lábios roxos da praia (só a canalha é que é valente o suficiente para enfrentar o gelo do mar do Norte).
A canalha, como nós éramos, actua em magote: corre nas festas de anos, sua, grita. Meninos e meninas: fica tudo transpirado, com as fraldas de fora, os cordões dos sapatos desapertados e os laços cor-de-rosa tortos na cabeça. Chegávamos ao fim, com as faces vermelhas de tanto brincar, e nunca achávamos que já eram horas de ir embora. A nossa avó já sabia: “A canalha nunca tem pressa.” Quando insistíamos, perguntava: “Mas agora a canalha já dá leis?”
Às vezes, se abusássemos da sorte, ameaçava dar-nos uma galheta, que era uma palavra que, em vez de nos assustar, nos fazia rir. Uma “galheta bem dada” era sempre um motivo de galhofa (galheta e galhofa até são parecidas). Ríamos nós, e ria-se ela.
Ainda hoje acho a palavra galheta cómica. Não gosto tanto da palavra canalha, mas divirto-me com o que cabe dentro dela. Na minha rua, há dois miúdos que passam as tardes a picar-se de bicicleta. No outro dia, um deles declarou alto e bom som: “Já te provei que ando mais do que essa tua trotinete!”. E continuaram naquele despique até o sol se pôr.
Se a minha avó visse aquilo, assomaria à janela para lembrar que já são horas de ir para casa, e acrescentaria o clássico “à noite nunca há pressas”. Quando nos abrisse a porta, avisaria: “Gira já tudo para banheira antes que levem uma galheta”. E nós íamos rir que nem perdidas daquela terrível ameaça. Canalhada brava… E continuaríamos à volta dela, a mostrar a cara e a fugir, só para a ouvirmos dizer outra vez a palavra “galheta”.
sexta-feira, 6 de julho de 2012
Diálogos - Parte II. Em casa.
Afonso, 5 anos: Um dia vou escrever uma canção só
com palavras fixes.
Mãe: Ai sim? Então e dá-me um exemplo de uma palavra
fixe.
Afonso: Relâmpago.
quinta-feira, 5 de julho de 2012
Diálogo num colégio em Santo Tirso
A Professora: Então, e agora nós vamos perguntar à Maria João se dá
muito trabalho escrever uma história. E ela de certeza que nos vai dizer que
teve, e tem, de ler muito e escrever muito. Não é, Maria João?
Eu, embalada pelo espírito pedagógico (que rapidamente me sairia furado): Sim, claro. Temos de ler muito. Ler um bocadinho todos os dias, escrever outro bocadinho todos os dias... Sabem que, quando tinha a vossa idade, já sonhava escrever um livro. Só se concretizou agora, que tenho 31 anos, o que prova que, por maiores que sejam as dificuldades, nunca se deve desistir. Porque, se acreditarmos muito, e trabalharmos para isso, os nossos sonhos, por mais impossíveis que nos pareçam, acabam por acontecer.
A menina: Isso é mais ou menos assim, porque eu, por exemplo, até posso sonhar muito que quero voar e não vou ganhar asas. Ou vou?
Eu (trazida à terra por uma criança): Pois, tens alguma razão. É melhor escolher um sonho que não desafie as leis da gravidade e da natureza.
Eu, embalada pelo espírito pedagógico (que rapidamente me sairia furado): Sim, claro. Temos de ler muito. Ler um bocadinho todos os dias, escrever outro bocadinho todos os dias... Sabem que, quando tinha a vossa idade, já sonhava escrever um livro. Só se concretizou agora, que tenho 31 anos, o que prova que, por maiores que sejam as dificuldades, nunca se deve desistir. Porque, se acreditarmos muito, e trabalharmos para isso, os nossos sonhos, por mais impossíveis que nos pareçam, acabam por acontecer.
A menina: Isso é mais ou menos assim, porque eu, por exemplo, até posso sonhar muito que quero voar e não vou ganhar asas. Ou vou?
Eu (trazida à terra por uma criança): Pois, tens alguma razão. É melhor escolher um sonho que não desafie as leis da gravidade e da natureza.
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