Dizem-me carinhosamente que
parece uma mala de palhaço. Reconheço que sim, que está mais próxima disso do
que da poesia dos gatos, aqueles que são tão elegantes e cheios de silêncios
como os poemas se tivessem patas. Mas a realidade é que o Gatuno não transpira
propriamente poesia de gatos pelos poros, é mais um felino trapalhão e cómico
do que um ser posto na terra pelos deuses para confundir os sentidos humanos.
Assim sendo, não me parece despropositado que esta seja, a partir do momento em que a fui buscar à garagem e lhe limpei o pó, a mala do gato Gatuno. E parece-me bem que seja vermelha como as dos palhaços - o Gatuno gosta de fazer rir e o vermelho é a cor da ira que ele sente diante do Trombudo. Tenho esta mania das histórias para as histórias. Como se uma cor precisasse de uma história, como se houvesse uma razão para o verde ser verde e o amarelo amarelo.
Nesta história da mala, as histórias não se ficam por aqui. Na minha rua (ela não é minha, mas eu gosto de lhe chamar assim), há uma loja de antiguidades - e de velharias... - que tem uma mala linda. Namoro-a todos os dias e, pelo menos, às terças e quintas vou lá apreçá-la e vê-la de perto. O senhor tira-a do móvel, eu aprecio-lhe o tamanho, as formas, e saio de mãos a abanar. Aquela mala tem uma história, e eu podia inventá-la. Está cheia de autocolantes de viagens. É velha e teatral, tem um passado naquele castanho gasto, não deve ter uma, mas imensas histórias. Aquela mala tem certamente, e pelo menos, uma história comprida, mas não é a minha história (pelo menos enquanto não morar nela como nesta rua que gosto de chamar minha).
Já esta mala vermelha foi, no passado, do meu tio António, casado com a minha tia Elisa, irmã da minha avó. O meu tio António tinha um negócio de relógios na baixa de Lisboa e viajava muitas vezes ao longo do ano para o estrangeiro. Herdei os postais que ele escrevia à minha tia. Preciosos retratos antigos dos sítios por onde passava e que começavam invariavelmente assim: “Minha querida, que estejas bem de saúde é o que mais desejo”. Sempre gostei de ler os postais, de ver as saudades que ele tinha dela, os beijos que lhe escrevia à mão, as queixas sobre a língua indecifrável na Alemanha, e sobre o frio mais frio e o ar-condicionado mais quente na Suíça. Queria dar um destino aos postais, o meu pai pensou que me pudessem inspirar uma história, mas, sempre que os lia e relia, nada acontecia que não fosse gostar de os ler e voltar a fechá-los na gaveta.
Por estes dias fui buscá-los e meti-os dentro da mala. Agora estão lá guardados, ao lado das máscaras de gato e do livro do Gatuno. Estão apenas lá dentro e ninguém, a não ser eu, se apercebe disso. Mas, para mim, a mala ganhou outro sentido. É que como se as viagens continuassem.
O Gatuno veio desassossegar a mala vermelha que estava pousada na garagem. Mas uma mala não serve para estar parada. Como um livro, serve para viajar, coleccionar histórias. Ir para um hotel em Zurique ou para uma biblioteca na Amadora. Tivesse ido um dia pela mão do meu tio-avô, vá agora pela minha: a mala está outra vez no seu caminho.
Apesar disso, mantenho o caso clandestino com a outra na loja de antiguidades. E um dia destes ainda vou raptá-la. Vou agarrá-la com as mãos e, mesmo que nunca tenha sido minha nem de ninguém que eu conheça, trazê-la para mim. Farei como faço com as histórias que leio: apropriar-me e deixar o resto acontecer.
Em narrativas como as destas malas andarilhas, sabemos só o passado: alguma vez o meu tio António, que só me conheceu até eu ser adolescente, adivinhou que eu ia andar com a mala dele por aí, com um Gatuno lá dentro?
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