segunda-feira, 21 de maio de 2012

Curtir o fundo da piscina

A minha vizinha do terceiro andar é professora de música. É uma senhora já de idade que toca muito bem piano. Hoje, domingo, desliguei a televisão e a aparelhagem só para a ouvir. Hesita aqui, repete ali, volta ao mesmo, muda de rumo. E eu, dois andares abaixo, a seguir-lhe os dedos, e a imaginar-lhe a cabeça ora dobrada junto ao piano, ora levantada a balançar.

Ela tem muito bom gosto musical. Algumas pessoas que vieram cá casa já o notaram. Volta e meia está a ouvir jazz, ou então o Hino da Alegria, nas alturas. Fá-lo em dias de sol aberto e à hora de almoço. Se abrir a janela da minha cozinha, a música dela invade-me tudo.

Neste momento, lá está ela, a tocar. Voltou atrás, corrigiu. Vai passar a tarde nisto.

Este som ao longe faz-me lembrar os tempos de Coimbra, em que passava muitas vezes pela rua do antigo Conservatório, e ouvia cá fora as aulas de canto, as vozes a afinarem-se, os violinos a desafinarem-se e os pianos à procura de se soltarem. Mais tarde, vivi lá perto, e adorava quando aquilo tudo me chegava aos ouvidos. Não precisava de ser perfeito, podia chegar aos tropeções que eu gostava na mesma. Talvez tudo isto se deva ao facto de, com alguma pena, nunca ter tido qualquer jeito para música, nem sequer para a flauta do ciclo preparatório, apesar dos incentivos do professor. Os ditados rítmicos eram um suplício. Quando um outro professor de música que tive começava a bater com uma moeda na mesa, eu ficava em pânico sem saber o que escrever no caderno. Para mim, era chinês. Copiava tudo por uma amiga, que percebia bastante daquilo. E ficava deslumbrada com o ouvido dela: como é que ela percebia o que ele estava a dizer, quando batia com uma moeda na mesa?

O talento, o dom de certas pessoas é extraordinário. E não precisa de ser só na música. Outra das artes para a qual nunca tive queda, apesar das aulas na infância, foi para nadar com desenvoltura. Aquele nadar que parece dançar não é comigo. Sei nadar: mal, mas sei. Mergulho de chapa, engulo pirolitos, e, mesmo assim, adoro água, piscina, mar.

Agora, adulta, resolvi voltar à natação para aperfeiçoar a minha técnica, ou não técnica. Inscrevi-me no Clube Nacional de Natação, e frequento as aulas dos adultos. À hora a que vou, à noite, sou quase só eu a chapinhar na piscina e o professor à minha volta a tentar convencer-me de que a minha maior dificuldade é nos bruços, quando essa modalidade é precisamente aquela que acho saber fazer melhor. Ele diz que nado com pés de bailarina, e que tenho de pôr os pés à Charlot. Não consigo, os meus músculos têm uma memória prodigiosa, são muitos anos a nadar mal, digo-lhe eu. E o pior é que, quanto mais me concentro, menos fluído é o meu movimento, mais me descoordeno, criando uma sensação artificial com as pernas que me constrange, prende. Ele diz-me "vá, quatro piscinas": ponho os óculos e começo a nadar para a frente e para trás. Enquanto atravesso a piscina, fixo-me mentalmente nos sapatões do Charlot e nada, zero. Só consigo ser cómica como ele, mas não consigo pôr os pés para fora . As pontas de ballet perseguem-me dentro de água.

Entretanto, àquela hora tardia, já só estão atletas de competição na piscina, a nadar mariposas esplêndidas. Mas nenhum deles consegue as minhas proezas. Primeiro, fazer com que o professor se deite no chão da piscina para me explicar, em seco, os movimentos. Segundo, ouvir da boca do professor que, quando me concentro, nado um misto de mariposa, crol e bruços. É fantástico.

Diz ele que eu tenho de incorporar a técnica e, depois, relaxar. Diz-me assim: “Maria João, pense noutra coisa, curta o fundo da piscina”. Eu bem tento, mas só me vêm à cabeça os sapatos esburacados do Charlot. Ao meu lado, nadam-se mariposas surpreendentes, bruços com elegância e suavidade, crol com rapidez e naturalidade. Vê-se a técnica, a perfeição do movimento, mas mais do que isso: vê-se que estão a curtir o fundo da piscina. Claro que não há talento sem treino. Mas, diante de um talento, quase nos esquecemos do treino que é. Parece tudo orgânico.

Eu, por exemplo, nem dou pelos ensaios da minha vizinha. Ou melhor, dou, mas às tantas, ao fim de uns minutos, é como se não desse. Nesses momentos, em que me esqueço, sei que estou com(o) ela a curtir o fundo da piscina.

sábado, 12 de maio de 2012

O Sassetti na nossa adolescência

Um amigo de infância, o Eduardo, enviou-me ontem uma mensagem. Era um admirador do músico. Assim que soube da morte do Bernardo Sassetti, lembrei-me logo deste meu amigo, que tem um gosto irrepreensível. Estava consternado.

Na mensagem perguntava-me se eu me lembrava, dizia que tinha sido a nossa primeira entrevista. Por acaso, não foi a minha primeira entrevista, respondi-lhe. A minha primeira entrevista foi, de facto, nesse Guimarães Jazz muito longínquo - acho que nem treze anos tinha feito ainda -, mas foi ao Hermeto Pascoal.
Durante a adolescência, tínhamos um grupo que escrevia umas coisas para o jornal local, o Povo de Guimarães. Nesse Guimarães Jazz íamos em bando entrevistar músicos a sério. É muito divertido pensar hoje nas perguntas que um bando de adolescentes em descoberta fazia a artistas como aqueles. Perguntávamos tudo: sobre o amor, sobre deus, sobre a arte. Fazíamos as perguntas mais espantosas, e víamos respostas no que nos diziam. Era um deslumbramento. Era mais poesia do que jornalismo, para ser sincera.
Bom, a primeira entrevista deste bando foi ao Bernardo Sassetti. Eu não fui, infelizmente. Mas ouvi-os nos dias seguintes a contar cada detalhe de cada resposta. Estavam em estado de encantamento. Ainda por cima o Bernardo Sassetti não só tinha talento, como era giro que se fartava. As meninas ficaram enfeitiçadas. Os rapazes também.
Nessa altura usavam-se gravadores com umas cassetes muito pequeninas. Como é evidente, à falta de material, reciclávamos as cassetes, gravando entrevistas umas por cima das outras. Mas havia duas intocáveis: a do Sassetti e a do Hermeto Pascoal. Eram pura magia. Acontece que alguém gravou por cima da do Sassetti e a entrevista dele eclipsou-se. Ninguém queria acreditar. Esse meu amigo de infância não se conformava. Por cima da do Sassetti, foi gravada uma entrevista à Matilde Rosa Araújo. Foi uma boa entrevista também, mas nós éramos adolescentes… Já não queríamos ouvir histórias para a infância. Naquela altura, nada nos tocava como a música, o amor e a poesia.
Naquela altura o bando ficou em estado de enamoramento pelas mãos, pelo piano, pela afabilidade do Sassetti. Será que ele se apercebeu do tamanho daquela inocência?
Já foi há quase 20 anos. Mas esse meu amigo de infância, o Eduardo, não se esqueceu. Enviou-me logo uma mensagem, queria saber se eu me lembrava. Lembro-me perfeitamente. E não estive lá.