Agora que
cheguei a Portugal, sinto saudades. Ia escrever que é sempre assim, que isto me
acontece sempre que viajo, mas não é verdade. Em São Tomé e Príncipe, foi
diferente. Não fui até este país atravessado pela linha do Equador para fazer
turismo, não fui sequer movida por uma enorme curiosidade, fui visitar uma
grande amiga que está lá a trabalhar – e isso fez toda a diferença.
Ficámos em casa
dela, em São Tomé, na cidade. Ouvimos as canções que os amigos dela ouvem,
dançámos as músicas que lhes sacodem os dias e, sobretudo, as noites,
perdemo-nos de jipe por estradas verdes e esburacadas: não tínhamos por onde
fugir, estávamos mesmo enfiadas em São Tomé, e distantes de casa. Foram só umas
semanas, mas eu não parava de pensar como eram bonitas aquelas paisagens e de
como não gostaria de viver lá.
Não sei quantas
vezes disse isto à Ana – chama-se Ana, a minha amiga. Quanto mais deslumbrante
era o cenário, mais só e longe me sentia. Só a língua e a forma acolhedora como
nos chamavam – as portuguesas – me aproximavam desse lugar longínquo. Mas este
movimento constante entre cá e lá desloca-nos mais do que nos coloca. Então,
quando começa a entardecer – lá põe-se escuro muito cedo -, e a solidão e a
festa se cruzam numa mesma noite, é que o nosso mapa se desorienta.
Pensei muito
nisto enquanto passeava à chuva, embrulhada naquele céu carregado; partilhei
isto com a Ana, enquanto estava entretida a lutar contra as santolas na mesa; disse-lho
entre mergulhos no mar; e devo tê-lo repetido outras vezes, quando estávamos deitadas
de barriga para cima na areia de praias só para nós. Como podia sentir falta de
tudo? Se lá há uma noite como cá não há, mais escura e mais cheia de barulhos; se
aquela natureza selvagem nos desarruma e entrega a silêncios; se lá há peixe
andala, e eu nem sequer como carne; se lá há música, e sempre vontade de dançar.
Chegámos a São
Tomé a 27 de Dezembro do ano passado às 7h00. Os amigos da Ana, que não nos
conheciam, foram com ela esperar-nos ao aeroporto. No último dia, fizeram
praticamente directa para nos levarem ao avião. Todos cheios de sono, num jipe
aos solavancos.
Na noite
anterior, tínhamos estado no funeral da avó de um deles, o Beny. Criam-se
intimidades muito depressa num sítio tão pequeno como São Tomé. O espaço
apertado e o tempo lento fazem mover histórias, que devem ser um encantamento
das ilhas: todos os dias há uma narrativa nova a agitar as conversas. Um roubo,
o guarda que adormece, uma paixão de sobressalto, uma frase dita ao acaso e que
é repetida horas a fio, uma peça de teatro que deveria ter começado às 8h00 do
relógio (!), mas que deve ter começado muito depois (não chegámos a saber
quando, porque fomos embora). Lá, o tempo do relógio é uma coisa; o da ilha,
outra.
Mas é mesmo
verdade: é impossível que os ponteiros que conhecemos possam ter registado as
horas que passámos à conversa na varanda. Foram finais de tarde e noites
intermináveis. Como é que em duas semanas se vai ao mesmo café todos os dias,
se criam rotinas?
Eu até tive
tempo para ir ao centro de saúde, porque fiquei com 39 de febre e, pelo sim,
pelo não, fui fazer o teste da malária. Nunca se sabe. A probabilidade de estar
com paludismo, estando a fazer a profilaxia da malária, deve ser a mesma de
levar com um raio na cabeça… Mas a Joana (que é enfermeira e vive com a Ana)
levou mesmo com um raio na cabeça quando esteve na Guiné-Bissau.
As coisas
acontecem… E em São Tomé nem se fala. “Onde nada se passa tudo pode acontecer”.
Encontrei esta frase num livro de Mia Couto que levei para ler e ela deu forma
ao desassossego adormecido que senti.
Porém, e apesar
dele, tenho saudades: da rede mosquiteira, dos passeios de jipe, da cor do céu,
do verde que cerra todos os horizontes, do peixe andala, da fruta-pão. E escrevo
este texto ao som de João Seria. E atrás de mim, tenho o quadro que o Beny
pintou da Alda Espírito Santo – a dona Alda.
No tamanho das
minhas saudades cabe tudo: a Ana que não está cá, a Joana na varanda à noite a
contar histórias sobre a Guiné-Bissau, até as músicas românticas do Kuassa e o guarda
a rondar a casa de capacete na cabeça (seria por causa da chuva? De repente,
era tudo tão natural que nem me lembro de perguntar por que usava ele aquilo). No
tamanho dessas saudades, só não caibo eu. Já estou de volta aos meus sítios,
onde tudo se passa e, no fundo, pouco acontece.
Acontecerá
certamente quando a Ana regressar. Mas ainda falta tanto. Até onde e até quando
África a vai contagiar? É que ouvi dizer que isso acontece, muito. E, ao
contrário do que ela poderá pensar, consigo perceber porquê.
(texto publicado na Fugas a 4 de Fevereiro de 2012)