domingo, 6 de julho de 2014

Os meus alter egos: a Maria e a João

No outro dia aconteceu assim. A pessoa chegou, disse o nome, levantei-me um pouco da cadeira, demos dois beijos e retribuí: Maria João. Ao meu lado, espantaram-se: Maria João? Que estranho, não estou nada habituada, Maria.

Durante muito tempo acontecia assim: Como preferes que te chamem? Maria João ou João? Tanto faz. A partir de certa altura, porém, ganhei um terceiro nome: Maria. Vou pôr de lado alguns: Mary, Mary John, Johnny, Joãozinha, Joãozinho, Juca, Juquinha e outros mais ou menos familiares. A Maria e a João já chegam como alter egos da Maria João. Mas, quando me perguntam, nunca tenho preferência. Digo: Tanto faz, como quiseres.

A minha família chama-me Maria João, nunca tive direito àquele segundo nome nos ralhetes. Fizesse chuva ou fizesse sol, lá em casa era sempre Maria João. Durante toda a minha adolescência, também não tive esses problemas de identidade: era fácil, chamavam-me Maria João na escola. Só alguns professores e outros adultos escolhiam João, ou a versão diminutivo.

O pior (o melhor) aconteceu já tarde, quando cheguei a Coimbra. No início, ainda era Maria João, João para alguns. É normal chamarem João a uma Maria João, Zé a uma Maria José. Mas a partir de certa altura – e creio saber quem lançou a coisa – os meus amigos de Coimbra começaram a chamar-me Maria. Estranhei. Uma vez ligaram para minha casa em Guimarães e perguntaram se a Maria estava. A minha mãe não percebeu. Expliquei-lhe: Os meus amigos de Coimbra chamam-me Maria. Porquê?, perguntou-me. Não sei.

O facto é que, a partir daí, com a mistura de amigos entre Guimarães, Coimbra e Lisboa, Maria pegou. Se calhar, é mais fácil: Maria. Como aquela revista. Simplesmente Maria. Mas ainda hoje me causa estranheza estar a falar com alguém que mal conheço e essa pessoa dizer-me: Ó Maria, ó Maria. Sinto logo que conheço essa pessoa – ou essa pessoa me conhece – há bem mais do que um segundo. Maria? Mas gosto.

Quem não tem dois nomes não entende a confusão. Mas reparem: uma amiga minha chama-se Ana (toda a gente lhe chama Ana) e quando alguém descobre que ela também é Cristina é sempre um espanto. Cristina? A sério? Também me sinto diferente quando alguém me chama Maria ou me chama João. É estranho. Depois dizem-me: João é mais giro ou tens cara de Maria. E eu fico a pensar nas caras que tenho. E já quase me parece uma cerimónia alguém me tratar pelo nome: Maria João.
 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Chegou.


Ele já chegou. É um novo livro, com texto meu, ilustrações da Catarina Correia Marques e edição da Máquina de Voar. Só está cá fora, porque a Margarida, da Máquina Voar, acreditou nele. Depois só cresceu, porque a Catarina deu forma a um rei que só existia em palavras. Cheira muito a novo, ainda apetece passar as mãos por ele a despropósito. Volta e meia, abro-o e vou à cata de pormenores nas ilustrações da Catarina para me encantar.
Queria explicar, como fazia facilmente com o Gatuno, de onde veio a história. O Gatuno tinha uma inspiração clara, o meu gato – ou um dos meus gatos. As minhas inspirações (fica engraçado no plural) vêm sempre de algo que me afecta. Não sei escrever sobre o que desconheço ou conheço vagamente.
Neste caso, a ideia de escrever uma história sobre uma pessoa que levantava voo já andava comigo há anos. Creio que foi motivada pelo Senhor Valéry que andava sempre aos saltinhos - do Gonçalo M. Tavares - e pelo sonho de uma amiga minha, em que ela voava. Seguiram-se alguns esboços inconsequentes - se a ideia não faz parte da minha vida, agarro-me à disciplina, ao esforço, à organização e não sai nada.
O derradeiro impulso para o texto veio obviamente de uma pessoa vaidosa que amavelmente me consumiu as energias durante algum tempo. Comecei a achar que teria um ego tão grande que qualquer dia rebentava. E, pronto, com uma fúria já me posso sentar a escrever uma história. Sento-me ao computador e as palavras caem, levantam-se, e lá aprendem a andar. No fim reconheço que exagerei, inventei, claro. Não escrevi sobre a outra pessoa, mas sobre mim, sobre a minha fúria em relação a essa outra pessoa que, vá-se lá saber, se calhar nem é tão inchada assim.
Algumas pessoas, como o David e a Suzana, que leram o texto antes de ser um livro, acabaram, mesmo sem o saberem, por fazer com que não desistisse dele. Mas quem leu quase todos os finais e frases novas foi o André. Já pus um livro a caminho de Macau – Macau será, espero, o título do meu próximo livro.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

"Onde nada se passa tudo pode acontecer"

Agora que cheguei a Portugal, sinto saudades. Ia escrever que é sempre assim, que isto me acontece sempre que viajo, mas não é verdade. Em São Tomé e Príncipe, foi diferente. Não fui até este país atravessado pela linha do Equador para fazer turismo, não fui sequer movida por uma enorme curiosidade, fui visitar uma grande amiga que está lá a trabalhar – e isso fez toda a diferença.
 
Ficámos em casa dela, em São Tomé, na cidade. Ouvimos as canções que os amigos dela ouvem, dançámos as músicas que lhes sacodem os dias e, sobretudo, as noites, perdemo-nos de jipe por estradas verdes e esburacadas: não tínhamos por onde fugir, estávamos mesmo enfiadas em São Tomé, e distantes de casa. Foram só umas semanas, mas eu não parava de pensar como eram bonitas aquelas paisagens e de como não gostaria de viver lá.
 
Não sei quantas vezes disse isto à Ana – chama-se Ana, a minha amiga. Quanto mais deslumbrante era o cenário, mais só e longe me sentia. Só a língua e a forma acolhedora como nos chamavam – as portuguesas – me aproximavam desse lugar longínquo. Mas este movimento constante entre cá e lá desloca-nos mais do que nos coloca. Então, quando começa a entardecer – lá põe-se escuro muito cedo -, e a solidão e a festa se cruzam numa mesma noite, é que o nosso mapa se desorienta.
 
Pensei muito nisto enquanto passeava à chuva, embrulhada naquele céu carregado; partilhei isto com a Ana, enquanto estava entretida a lutar contra as santolas na mesa; disse-lho entre mergulhos no mar; e devo tê-lo repetido outras vezes, quando estávamos deitadas de barriga para cima na areia de praias só para nós. Como podia sentir falta de tudo? Se lá há uma noite como cá não há, mais escura e mais cheia de barulhos; se aquela natureza selvagem nos desarruma e entrega a silêncios; se lá há peixe andala, e eu nem sequer como carne; se lá há música, e sempre vontade de dançar.
 
Chegámos a São Tomé a 27 de Dezembro do ano passado às 7h00. Os amigos da Ana, que não nos conheciam, foram com ela esperar-nos ao aeroporto. No último dia, fizeram praticamente directa para nos levarem ao avião. Todos cheios de sono, num jipe aos solavancos.
 
Na noite anterior, tínhamos estado no funeral da avó de um deles, o Beny. Criam-se intimidades muito depressa num sítio tão pequeno como São Tomé. O espaço apertado e o tempo lento fazem mover histórias, que devem ser um encantamento das ilhas: todos os dias há uma narrativa nova a agitar as conversas. Um roubo, o guarda que adormece, uma paixão de sobressalto, uma frase dita ao acaso e que é repetida horas a fio, uma peça de teatro que deveria ter começado às 8h00 do relógio (!), mas que deve ter começado muito depois (não chegámos a saber quando, porque fomos embora). Lá, o tempo do relógio é uma coisa; o da ilha, outra.
 
Mas é mesmo verdade: é impossível que os ponteiros que conhecemos possam ter registado as horas que passámos à conversa na varanda. Foram finais de tarde e noites intermináveis. Como é que em duas semanas se vai ao mesmo café todos os dias, se criam rotinas?
 
Eu até tive tempo para ir ao centro de saúde, porque fiquei com 39 de febre e, pelo sim, pelo não, fui fazer o teste da malária. Nunca se sabe. A probabilidade de estar com paludismo, estando a fazer a profilaxia da malária, deve ser a mesma de levar com um raio na cabeça… Mas a Joana (que é enfermeira e vive com a Ana) levou mesmo com um raio na cabeça quando esteve na Guiné-Bissau.
 
As coisas acontecem… E em São Tomé nem se fala. “Onde nada se passa tudo pode acontecer”. Encontrei esta frase num livro de Mia Couto que levei para ler e ela deu forma ao desassossego adormecido que senti.

Porém, e apesar dele, tenho saudades: da rede mosquiteira, dos passeios de jipe, da cor do céu, do verde que cerra todos os horizontes, do peixe andala, da fruta-pão. E escrevo este texto ao som de João Seria. E atrás de mim, tenho o quadro que o Beny pintou da Alda Espírito Santo – a dona Alda.
 
No tamanho das minhas saudades cabe tudo: a Ana que não está cá, a Joana na varanda à noite a contar histórias sobre a Guiné-Bissau, até as músicas românticas do Kuassa e o guarda a rondar a casa de capacete na cabeça (seria por causa da chuva? De repente, era tudo tão natural que nem me lembro de perguntar por que usava ele aquilo). No tamanho dessas saudades, só não caibo eu. Já estou de volta aos meus sítios, onde tudo se passa e, no fundo, pouco acontece.
 
Acontecerá certamente quando a Ana regressar. Mas ainda falta tanto. Até onde e até quando África a vai contagiar? É que ouvi dizer que isso acontece, muito. E, ao contrário do que ela poderá pensar, consigo perceber porquê.
 
(texto publicado na Fugas a 4 de Fevereiro de 2012)

terça-feira, 25 de junho de 2013

Agenda para as férias

Não fazer listas. Guardar a agenda numa gaveta fechada à chave e deitar a chave ao rio. Usar despertador para aproveitar as manhãs. Ler. Não ligar o computador. Não ir ao facebook. Esquecer o email. Deixar o telemóvel em casa. Tomar pequenos-almoços como se fossem almoços. Ler. Não verificar o email. Não ir ao facebook. Ler. Passear à beira-mar. Nadar. Boiar de olhos abertos. Ouvir Ali Farka Touré. Desligar tudo das tomadas. Fumar tabaco de enrolar ao final da tarde. Beber cerveja e mojitos. Jantar sem tomar banho. Beber vinho e sumo de laranja. Ler as notícias só em papel. Não pôr fotografias de pés na areia no facebook. Ler. Comer uma bola de berlim e uma maçã. Dormir com o pé direito de fora. Passear com a minha cadela. Vestir todos os dias o mesmo vestido. Andar sempre de chinelos. Não secar o cabelo. Ler. Não pôr fotografias do mar azul no facebook. Não responder a emails. Arrumar o computador num armário bem alto. Escrever à mão. Dormir com o pé esquerdo de fora. Passear com a minha cadela pela sombra. Aproveitar para dar ao meu pai, que fez anos, não um after shave, mas um prato de bacalhau à brás e outro de arroz doce. Pôr a mesa na varanda. Desligar a televisão. Escrever uma carta aos meus amigos emigrados ou em vias de. Pôr os envelopes no correio, até ao outro lado do mundo. Prometer que os vou visitar. Talvez até emigrar. Ler. Adormecer destapada, de barriga para cima. Deixar os meus gatos com amigos. Não perguntar todos os dias se eles estão bem e a dar muito trabalho. Não ficar ansiosa se não me responderem logo. Passear sozinha. Dizer seis palavras num dia inteiro. Reparar. Escrever num pequeno bloco à mão. Ver. Escrever num pequeno bloco à mão. Observar. Escrever à mão. Dizer cinco palavras num dia. Misturar melancia com vinho tinto e pêssegos com água. Comer laranja à noite. Não decidir. Ouvir conversas alheias na praia. Anotar tudo num bloco, à mão. Desenhar pessoas com palavras num bloco. À mão. Levar maçãs e água para a praia, mas comer amêijoas e pão a  escorrer manteiga. Pode ser mais uma, se faz favor. Esquecer-me das maçãs na mochila. Bater, como uma selvagem, em pessoas que deixem beatas na areia. Adormecer de janela aberta. Falar sozinha. Meter num frasco o cheiro do Verão à noite. Ir para a cama à meia-noite e às sete da manhã. Lembrar-me dos sonhos no dia seguinte. Não os contar. Não ir ao facebook. Falar sozinha. Ler. Ler em voz alta. Ver o meu pai dar gelado à cadela e não dizer nada. Dar-lhe fiambre de peru às escondidas. Falar com ela. Meter o cheiro dos pinheiros mansos num frasco. Decorar um poema. Brincar com os filhos dos outros. Escrever um bloco inteiro à mão. Comprar um novo. Acreditar que acreditar em meditação já é meditar. Não escrever nenhum livro. Não plantar nenhuma árvore. Não ter nenhum filho. Arranjar desculpas para estar sozinha. Chegar de comboio. Meter conversa no comboio. Ouvir esta música pelo menos uma vez por dia.

terça-feira, 28 de maio de 2013

O Vitória ganhou a taça, avô!

O título não é verdadeiro, porque nunca tratei o meu avô por avô. Ao meu avô materno sempre chamei “bubu”. No Norte não há avós com v. O meu avô era vitoriano por nascimento e convicção. Dos ossos ao coração. Lembro-me vagamente de ele ter, no escritório, uma fotografia das netas e outra de uma equipa, de um qualquer ano que não sei precisar, do Vitória. Chegou a ser da direcção do clube e usava, volta e meia, um emblema do Vitória na lapela do casaco. Como nunca gostei de futebol, nunca liguei muito às histórias que ele, de vez em quando, contava. Hoje tenho pena, muita pena, de não ter fixado com atenção essas recordações a preto e branco. Poderia ter construído, na minha memória e na minha fantasia, um futebol sem aquele ruído de fundo dos estádios, sem a voz dos relatos que nunca gostei de ouvir.
 
Claro que, no outro dia, gostei de ver as imagens dos vitorianos a festejar. Mas isso acontece-me sempre que há uma multidão a celebrar, a alegria contagia-me, mesmo que aquilo pouco me diga, pega-se à pele.

Se, na minha infância e adolescência, o futebol me era indiferente, hoje intriga-me: intriga-me o que move as pessoas, o sítio de euforia, o momento em que saímos de nós para nos entregarmos a algo que nos controla.

O meu avô, que tinha muita vida dentro dele e gostava muito de viver, morreu antes do tempo. Quando morreu já era avô e já tinha careca – nós gostávamos de o arreliar, tocando-lhe nela -, mas foi antes do tempo, porque a vida não estava cansada dele nem ele farto da vida.

Foi só depois de o meu avô ter morrido que passei a dizer, sempre que me perguntavam pelo clube, que era do Vitória. É só por causa dele que respondo isso. Sei lá quem anda a treinar o clube, quem são os jogadores. Mas o meu inconsciente decidiu assim e eu obedeço-lhe.

Percebi, muitos anos depois, que o meu avô, apesar das nossas diferenças, era mais generoso. Na minha adolescência, eu saía da sala se havia jogo de futebol. Televisão ligada, rádio, barulho, e eu a querer ler poesia. Na altura, com 14 ou 15 anos, eu achava que Fernando Pessoa tinha vindo ao mundo para me dizer coisas que mais ninguém me dizia. Eu saía da sala, mas o meu avô, o meu avô deu-me a colecção de Pessoa inteira ilustrada.
 
Eu tinha muitas discussões com o meu avô. A minha avó abria a boca e dizia que eu discutia política como um homem. Sobretudo na minha adolescência, provocava-o sem medo, dizia-lhe que era comunista e apresentava-lhe as minhas teorias apaixonadas, quase punha Jesus Cristo a fazer a revolução armada. Não era bem aceite, mas o meu avô, o meu avô mandou encaixilhar um poema meu, uma vez. Chamava-se “Liberdade” e, pelo meio, tinha um verso sobre “fazer amor entre lírios e delírios”. O meu avô era conservador em muitas coisas, mas gostava mais de nós do que dessas coisas conservadoras. O poema ainda lá está, numa moldura, com uma letra muito redonda, um orgulho.
 
Hoje queria fazer com ele o que ele fazia com os meus poemas. Festejar em conjunto. Esquecer-me do facto de gostar ou não de futebol e ficar contente só porque ele ficaria contente. Dizer-lhe que o Vitória, caramba, o Vitória ganhou a taça de Portugal, bubu!

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Pontes

 
Tenho uma tara por pontes. E já que estamos em modo de confissões, também tenho um fraquinho por aeroportos, gosto de ver o avião na pista; por estações de comboios, gosto de comboios velhos e de estações pequenas; e por metros, gosto de ir sentada, frente a frente com as pessoas. Mas as pontes. As pontes – têm de ter uma certa escala – só existem nas cidades e nos filmes. E nas fotografias. Existem de uma forma visual, com um grande corpo, e tenho muita pena de não saber mostrá-las num texto. Não se sente nada se disser que só gosto mesmo de conduzir se estiver a atravessar uma ponte. Tem de ser grande, tem de me parecer enorme, vista de baixo, vista de cima, vista dos lados. Mesmo que acrescente luz ao texto, mesmo que diga que está sol quando atravesso a ponte de carro, não chega para falar dela. Paciência. Mas continuo a gostar muito de passear perto de uma ponte, de ver uma da janela. Uma ponte muda tudo na paisagem. Põe a paisagem em movimento. A mim, põe-me em movimento também. Deve ser por isso que gosto delas, de estações de comboio antigas, de aviões na pista e de me sentar no banco do metro.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Um Gepeto em Veneza


Estas são as máscaras que tenho usado nas mais recentes andanças do Gatuno. Comprei-as numa viagem a Veneza: uma foi comprada numa cooperativa de artistas local e as outras duas a um artesão que me fez logo lembrar o Gepeto. É, como a personagem da história, italiano, mas este é de Veneza e, em vez de dar vida a um burattino, dá vida a máscaras. Tem para todos os preços e gostos, mas as que escolhi são feitas à mão e seguem a moda antiga da cidade dos disfarces, das gôndolas e dos canais.
Sinto uma estranheza boa diante de algumas máscaras, acho-as misteriosas, encantatórias. Depois de ter passado um Carnaval em Veneza de bocaaaberta, cheguei a fazer, quando andava no TEUC, um workshop de máscara: foi uma experiência intensa, porque as máscaras, já sabe, revelam mais do que escondem.
Os miúdos a quem as mostrei também não conseguem tirar os olhos delas. Tenho lido partes do livro com uma ou outra posta e, para que resulte cada vez melhor, ponho-me a ensaiar e ensaiar em casa. As horas que passei no teatro na faculdade ganharam um sentido novo (os sentidos subtis se calhar passaram-me despercebidos, ou não, mas isso não interessa nada agora).
Dinamizar uma leitura para crianças exige reflexão e treino, não sai na hora nem cai do céu sem aviso. Na Pós-Graduação em Livro Infantil, também temos (para além da parte teórica) workshops de animação da leitura e são horas maravilhosas em que andamos a ler poemas em voz alta, a fazer sons, a espreitar por janelas imaginárias ou a fazer de pássaro pela sala, ondulando os braços no ar. Fico tão abstraída de tudo que até me esqueço que os nossos colegas dos PhD’s da Católica, de fato e cara passados a ferro, nos vêem através do vidro…
Tudo o que parece simples é quase sempre difícil e ler um livro a crianças, agarrá-las pelo colarinho (como também se costuma dizer no jornalismo), não é excepção – e o difícil não é só a idade e a concentração (ou a falta dela) dos miúdos. O delicado é também encontrar um equilíbrio, porque agarrar pelo colarinho não significa folclore e excesso, mas sim vivacidade e alguma ousadia.
O facto, porém, de ser difícil encontrar esse sítio de intriga e de desassossego não lhe retira diversão. A única parte aborrecida é mesmo o país estar fechado para obras e com tabuleta à porta a dizer “Volte mais tarde”. Como não há dinheiro para nada e como, às tantas, é tudo tão divertido, ninguém se lembra que o tudo-tão-divertido dá trabalho, que os livros são para vender e que os autores (os escritores, os ilustradores, os editores) infelizmente não se alimentam só de gargalhadas.
A boa notícia é que, algumas vezes, o treino de ler poesia no chão ou a fingir que se voa, sob o olhar engravatado e atónito da maioria, ajuda-nos a virar a cabeça do avesso para encontrar algumas soluções. Com jeito, lá se percebe que os autores afinal também se alimentam de batatas assadas e arroz de ervilhas e até há quem se empenhe no tempero. Apesar da tabuleta à porta no país, já dizia (ou terá dito) Galileu: eppur si muove.