terça-feira, 28 de maio de 2013

O Vitória ganhou a taça, avô!

O título não é verdadeiro, porque nunca tratei o meu avô por avô. Ao meu avô materno sempre chamei “bubu”. No Norte não há avós com v. O meu avô era vitoriano por nascimento e convicção. Dos ossos ao coração. Lembro-me vagamente de ele ter, no escritório, uma fotografia das netas e outra de uma equipa, de um qualquer ano que não sei precisar, do Vitória. Chegou a ser da direcção do clube e usava, volta e meia, um emblema do Vitória na lapela do casaco. Como nunca gostei de futebol, nunca liguei muito às histórias que ele, de vez em quando, contava. Hoje tenho pena, muita pena, de não ter fixado com atenção essas recordações a preto e branco. Poderia ter construído, na minha memória e na minha fantasia, um futebol sem aquele ruído de fundo dos estádios, sem a voz dos relatos que nunca gostei de ouvir.
 
Claro que, no outro dia, gostei de ver as imagens dos vitorianos a festejar. Mas isso acontece-me sempre que há uma multidão a celebrar, a alegria contagia-me, mesmo que aquilo pouco me diga, pega-se à pele.

Se, na minha infância e adolescência, o futebol me era indiferente, hoje intriga-me: intriga-me o que move as pessoas, o sítio de euforia, o momento em que saímos de nós para nos entregarmos a algo que nos controla.

O meu avô, que tinha muita vida dentro dele e gostava muito de viver, morreu antes do tempo. Quando morreu já era avô e já tinha careca – nós gostávamos de o arreliar, tocando-lhe nela -, mas foi antes do tempo, porque a vida não estava cansada dele nem ele farto da vida.

Foi só depois de o meu avô ter morrido que passei a dizer, sempre que me perguntavam pelo clube, que era do Vitória. É só por causa dele que respondo isso. Sei lá quem anda a treinar o clube, quem são os jogadores. Mas o meu inconsciente decidiu assim e eu obedeço-lhe.

Percebi, muitos anos depois, que o meu avô, apesar das nossas diferenças, era mais generoso. Na minha adolescência, eu saía da sala se havia jogo de futebol. Televisão ligada, rádio, barulho, e eu a querer ler poesia. Na altura, com 14 ou 15 anos, eu achava que Fernando Pessoa tinha vindo ao mundo para me dizer coisas que mais ninguém me dizia. Eu saía da sala, mas o meu avô, o meu avô deu-me a colecção de Pessoa inteira ilustrada.
 
Eu tinha muitas discussões com o meu avô. A minha avó abria a boca e dizia que eu discutia política como um homem. Sobretudo na minha adolescência, provocava-o sem medo, dizia-lhe que era comunista e apresentava-lhe as minhas teorias apaixonadas, quase punha Jesus Cristo a fazer a revolução armada. Não era bem aceite, mas o meu avô, o meu avô mandou encaixilhar um poema meu, uma vez. Chamava-se “Liberdade” e, pelo meio, tinha um verso sobre “fazer amor entre lírios e delírios”. O meu avô era conservador em muitas coisas, mas gostava mais de nós do que dessas coisas conservadoras. O poema ainda lá está, numa moldura, com uma letra muito redonda, um orgulho.
 
Hoje queria fazer com ele o que ele fazia com os meus poemas. Festejar em conjunto. Esquecer-me do facto de gostar ou não de futebol e ficar contente só porque ele ficaria contente. Dizer-lhe que o Vitória, caramba, o Vitória ganhou a taça de Portugal, bubu!

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Pontes

 
Tenho uma tara por pontes. E já que estamos em modo de confissões, também tenho um fraquinho por aeroportos, gosto de ver o avião na pista; por estações de comboios, gosto de comboios velhos e de estações pequenas; e por metros, gosto de ir sentada, frente a frente com as pessoas. Mas as pontes. As pontes – têm de ter uma certa escala – só existem nas cidades e nos filmes. E nas fotografias. Existem de uma forma visual, com um grande corpo, e tenho muita pena de não saber mostrá-las num texto. Não se sente nada se disser que só gosto mesmo de conduzir se estiver a atravessar uma ponte. Tem de ser grande, tem de me parecer enorme, vista de baixo, vista de cima, vista dos lados. Mesmo que acrescente luz ao texto, mesmo que diga que está sol quando atravesso a ponte de carro, não chega para falar dela. Paciência. Mas continuo a gostar muito de passear perto de uma ponte, de ver uma da janela. Uma ponte muda tudo na paisagem. Põe a paisagem em movimento. A mim, põe-me em movimento também. Deve ser por isso que gosto delas, de estações de comboio antigas, de aviões na pista e de me sentar no banco do metro.