terça-feira, 21 de agosto de 2012

O meu pai

Para ler com esta música no repeat:


O meu pai, conta a minha mãe, nunca me mudou uma fralda. E acho que só tenho uma fotografia ao colo dele, muito bebé. Mas tirava-me muitas fotografias e, quando eu tinha medo do escuro, ficava de mão dada comigo até eu adormecer. Que remédio, não podia ser sempre a minha mãe. Contava-me histórias à noite e aldrabava tudo. Não tinha sucesso, eu sabia cada palavra de cor.

O meu pai sempre gostou de me espetar petas: quando eu era miúda, disse que me ia dar um crocodilo e que íamos passeá-lo de trela para o Toural. Perguntei onde é que o íamos pôr, ele disse no terraço. Acreditei. Anos mais tarde, na minha adolescência, comprou-me uma viola para as minhas aulas. Disse-me que era uma Fender Stratocaster e deixou-me espalhar o mito. Só descobri que era mentira quando o meu avô paterno – que tocava guitarra portuguesa – se riu muito ao ouvir a suposta marca da guitarra.

O meu pai sempre murmurou palavrões ao volante, no trânsito, quando me levava à escola de manhã. E sempre teve um carinho especial pelos meninos que faziam diabruras nas aulas. Gostava dos malcomportados. Ele próprio orgulha-se das suas façanhas: quando andava no liceu, levou um vinil do Jimi Hendrix, com mulheres nuas na capa, para uma aula dada por um padre. Pousou o disco na mesa, sabendo que o padre o iria virar ao contrário quando passasse e visse as maminhas ao léu. Acertou. O meu pai adora arreliar as pessoas. E adora vinis. Deu-me o Kind of Blue do Miles Davis em vinil e em cd. Há coisas que nunca são de mais.

O meu pai nunca me inspirou confiança quando me dava dicas para os testes. Contestava as teorias todas que nos ensinavam em História - se eu as escrevesse seria certamente chamada à parte pelos professores. Uma vez, na primária, deu-me uma caneta de tinta permanente para as mãos e eu borratei a cópia toda. A professora disse-me para não usar mais canetas daquelas. Outra vez, a minha mãe, que estava ocupada, pediu-lhe para me fazer perguntas antes do teste de Ciências…Riscou-me o livro todo, a explicar-me como é que se estudava: setas para um lado, sublinhados para outro. Eu repetia-lhe que já tinha estudado, que só queria que me fizesse perguntas. Às tantas, fartou-se e disse-me assim: “Vamo-nos baldar para isto?” Claro que fui logo, disparada, contar à minha mãe.

O meu pai resistiu até à última, quando fiz uma birra porque queria ir de anjo na procissão da catequese. Para o meu pai, não devia haver pesadelo maior do que passar um sábado ou um domingo lá na paróquia, no meio de crianças vestidas de anjos e de nossas senhoras. Só me dizia: “Mas que grande frete”. Lá acabei por convencê-lo, mas chegámos tão tarde que já não havia fatiota para mim.

O meu pai tentava antes convencer-me a alinhar noutros programas. Queria, por exemplo, que fosse com ele a um concerto dos Rolling Stones, quando eu ainda andava para aí na quarta classe. Persuadiu-me de todas as formas, disse-me que eles usavam umas bonecas insufláveis, gigantes, no espectáculo. Nada, foi sozinho. Mais tarde, quando eu tinha aí uns 12 anos, já não sei precisar, sabendo que eu gostava (na altura!) de Guns N’Roses, comprou logo bilhetes. O Expresso escrevia que vinha aí a banda mais perigosa do planeta. Falava-se que a pala de uma das bancadas do estádio de Alvalade não oferecia segurança. E o meu pai como um peixe na água. Pouco tempo depois, entre outros concertos, fomos também juntos aos U2. Em nenhum dos casos era música que o meu pai apreciasse particularmente, mas era sem dúvida um programa melhor do que as procissões da catequese.

O meu pai sempre resolveu problemas num instante, e com grande sabedoria. Recordo-me, por exemplo, da forma como rapidamente me sossegou quando, na primeira classe, tropecei na mochila de uma amiga, caí na sala de aula, e abri a parte superior do lábio. Quando o meu pai chegou à escola, eu estava agarrada à professora, e não parava de chorar. Ele agradeceu o cuidado, meteu-me no carro e, como eu não me calava, perguntou-me: “Queres ir ao hospital levar pontos nisso ou queres uma super gorila?”. Eu parei de chorar e, com uma voz ainda muito sofrida, respondi: “Uma super gorila”. Tenho pena que a minha cicatriz já quase não se note hoje, porque, quando alguém repara nela, gosto de me lembrar que as nossas piores dores podem passar com algo tão simples como uma pastilha elástica. E cicatrizar por si.

Mais tarde, quando comecei a viajar sozinha, o meu pai nunca se preocupou em saber se eu tinha comido ou dormido bem. O que queria - e quer - saber é se, por exemplo, estou a levar com 50 graus em Marrocos. Isso é que o deixa bem-disposto. O meu pai compreende-me se eu gastar seis euros a beber um café na Piazza Navona e depois tiver de dormir o resto das férias na praia, ao relento. O assim-assim não vale a pena.O meu pai é politicamente incorrecto. Responde torto quando lhe apetece. Gosta do azedume do Vasco Pulido Valente e do catastrofismo do Medina Carreira. O meu pai não gosta de paninhos quentes.

O meu pai não tem medo de envelhecer. Gosta de se auto-intitular “o velhote”. O meu pai só não gosta é que lhe digam que é parecido com o Guterres. De facto, de cara são parecidos (e eu sou a cara chapada do meu pai…), mas o meu pai é bem mais alto. Apesar dessas semelhanças, quando olho para o meu pai, não consigo ver o Guterres, mas o Mick Jagger. O meu pai ouve música nas alturas no carro. Antigamente ouvia rock nas alturas em casa, com phones– e sem eles, quando a minha mãe saía. Hoje ouve ópera. Não mudou nada na essência. Continua o mesmo.

O meu pai chateia muito as pessoas que o chateiam. Escreve cartas para bancos, para agências de viagens. A sua figura de estilo preferida é a ironia, gosta do Eça. Mas o meu pai manda muitas vezes a erudição às urtigas. O meu pai, uma vez, queria andar à porrada numa reunião de condóminos.

O meu pai casou com uma minhota, a minha mãe. E foi recambiado de Lisboa para Guimarães. Hoje vive rodeado de mulheres. E adora uma boa guerra de sexos: passa a vida a dizer que teve tanto azar que lá em casa “até o cão é cadela” (ainda por cima, a Piruças tem muito pêlo na venta).

Lá em casa, o meu pai só trata do vinho. Eu tento até hoje educá-lo, mas não consigo. Na verdade, ele também nunca me obrigou a fazer nada, nem a cama, nem a arrumar a cozinha, nem o quarto. E sempre me deixou ir de pijama para a mesa. E tem gosto em servir-me na mesma o vinho, mesmo que eu esteja com remelas e de pantufas. A verdade é que o meu pai não faz nada lá em casa, mas faz-nos as vontades todas.

O meu pai sempre trabalhou, mesmo à noite e aos fins-de-semana. Quando eu era miúda, ele só tirava 15 dias de férias. Dizia que estava a ganhar a vida. Ganhar a vida para o meu pai significa ganhar dinheiro. E o meu pai não chama dinheiro ao dinheiro, chama-lhe caroço. Se um psicólogo visse aquilo, não aprovaria. Mas o meu pai também não aprova muito a psicologia.

Massacrava-me, a mim e às minhas primas, por causa da nossa pronúncia do Norte e por causa da nossa ignorância em História e Geografia. Chamávamos-lhe o Professor Tonecas.

Quando eu tinha 16 anos, o meu pai ia-me buscar à discoteca às quatro da manhã, com um sobretudo por cima do pijama. E encarou com muito desportivismo as duas vezes em que, no dia da mudança do relógio, o deixei uma hora à seca. Quando entrei no carro, só me disse assim: “Para o ano, já não caio”. Caiu. Ainda hoje se ri disso, aprecia uma boa disputa. O meu pai gosta de se rir dele. E gosta de pessoas que se sabem rir delas. Diz que é sinal de inteligência.

O meu pai é impaciente. Uma vez saiu do carro em plena Avenida D. João IV e mandou parar o trânsito, qual polícia sinaleiro, porque uma senhora não conseguia fazer uma manobra e ele estava farto de esperar. Por acaso, dessa vez não estava com ele, mas já passei por vergonhas semelhantes. O meu pai não quer saber. O meu pai quer lá saber.

O meu pai não é piegas. Por isso não lhe podia escrever um texto piegas. O meu pai não gosta de filmes românticos, a não ser que metessem, há uns anos, a Kim Basinger. O meu pai prefere o Apocalypse Now ou a trilogia do Padrinho – e eu herdei dele esse fraquinho pelos loucos e pelos gangsters do cinema.

O meu pai não se entusiasma muito com as minhas esforçadas tentativas de escrever reportagens de teor literário. Mas gosta muito de ler cada um dos comentários que os leitores fazem aos meus artigos. Se forem insultuosos, melhor. Telefona-me logo a perguntar se já os vi, não vá dar-se o caso de me ter passado despercebido… Diverte-se à brava. O meu pai adora uma boa polémica. Manda-me emails com histórias que acha serem notícia e assina-os Garganta Funda.

O meu pai nunca se preocupou com as adversidades que me surgem no caminho. A única coisa que me sabe dizer, desde miúda, é: “desenrasca-te”. Quando aí aos nove anos tive o meu primeiro arrufo de amor, o meu pai apoiou-me: “Se ele te voltar a chatear, tu diz-me que eu dou-lhe um murro”. Depois reconsiderou: “Dá-lhe antes tu”.

O meu pai ensinou-me a não pensar nos problemas antes de eles chegarem. E quando chegarem? “Logo se vê”.

O meu pai não sabe, mas aprendi com ele que a felicidade depende sobretudo disto: de nos rirmos de nós próprios, de nos desenrascarmos e de não termos medo. Logo se vê. Só não sei, ainda, como o meu pai, não ligar patavina ao que não nos interessa. E ele sabe fazer isso com uma pinta desgraçada. Deviam ver. O meu pai é o maior da rua dele.

E o meu mundo foi, durante muito tempo, do tamanho dessa rua. Já não é. Mas o meu pai continua a ser o maior.

Faz hoje 60 anos.

Verão no Algarve

Tenho mais que fazer, é verdade, mas não me apetece. Desconcentro-me facilmente a ler na praia. O Vargas Llosa que trouxe não vai bem com as conversas da vizinhança no areal, e eu não resisto nunca a arrebitar a orelha para as ouvir. Tenho duas entrevistas de várias horas para passar, e é o que vou fazer já, já a seguir (não vá dar-se o caso de algum dos meus editores estar a ler isto).

Por enquanto, vou só até ali à varanda escrever. Deixo o computador, pego num bloco e numa caneta. É raro fazê-lo assim: no papel e com caneta (trabalho, a tirar notas, não conta). Chama-me à atenção um pai, um ser enorme e peludo, enfiado na piscina das crianças. O filho dele, um ser pequenino e de braçadeiras postas, chora à borda da piscina, a olhar para ele. O caso não é para menos. Se o meu pai estivesse na piscina das crianças eu também me fartaria de chorar.

O pai vira-se de barriga para baixo e, em vez de nadar, dada a altura mínima da água, começa a andar, tocando com as mãos (as patas da frente) no fundo da piscina. A criança tenta chamá-lo à razão: atira-lhe com uma pequena bola colorida à cara e, quando ele se aproxima o suficiente, aperta-lhe o nariz com força. Nada, o pai está contente. E continua a mover-se devagar pela piscina. Parece um tubarão com calções às flores azuis.

O pai-tubarão tenta convencer o miúdo a entrar. Para isso, faz um número: enfia a cabeça dentro de água e começa a mover-se em círculos, para aparecer depois súbita e furiosamente, diante do olhar consternado da criança. O miúdo olha para ele e, logo de seguida, vai a correr para o pé da mãe na espreguiçadeira. Mais uma vez, compreendo a criança.

E compreendo os outros miúdos que estão todos, não na piscina pequena, mas na dos adultos. Movimentam-se freneticamente com as braçadeiras postas - não sei como aguentam tanto tempo naquele ritmo do nadar à cão. Mas que aguentam, aguentam: horas a fio. Tomara eu ter aquele fôlego quando vou praticar para o Clube Nacional de Natação.

O pai, esse, continua dentro da piscina dos pequenos. É mesmo a única criatura lá enfiada. Agora sentou-se, e está a brincar sozinho com a bola. Não, não está a brincar sozinho com a bola. Em bom rigor, ficou a brincar sozinho com a bola.

E só no fim deste texto é que o percebo. Está muito calor. Ali, naquela piscina pequenina, o pai-tubarão com calções às flores azuis está sentado, e fresquinho. Mesmo assim, fico do lado do puto. Se puder optar, quando mergulhar, só pode ser na piscina funda e, se puder optar uma segunda vez, quando crescer, não quero ser grande.